Mais velho, doente, o inspector da Polícia Judiciária do Porto Jaime Ramos, herói dos romances de Francisco José Viegas, está de regresso em "O Mar em Casablanca". "É o Jaime Ramos dos anos 2010. Com medo", diz o escritor, enquanto acende uma cigarrilha, em Lisboa.
Estamos na sua sala de trabalho, da editora Quetzal e da revista "Ler", ao final da tarde, rodeados de livros para falarmos de policiais. "Temos um modelo de detective que manda que ele seja herói absoluto", diz o ex-director da Casa Fernando Pessoa. "E o que é isso? É o herói que resiste muito à semelhança do que acontece com os detectives dos anos 60 que têm úlceras e pedras na vesícula mas tomam aspirinas e resolvem tudo com álcool. Têm problemas conjugais, problemas de adaptação e questões com o passado. O que acontece com o inspector Jaime Ramos é que ele tem tudo isso mas nunca o mostrou." Até aqui.
Neste romance que leva o leitor até ao Vidago Palace Hotel, às vindimas do Douro, à guerra na Guiné, aos acontecimentos do 27 de Maio de 1977 em Angola, passando por Chaco, na Argentina... o detective aparece fragilizado, a colocar perguntas estranhas ao colega Isaltino. "‘O Mar em Casablanca' é um livro mais solitário. O objectivo de ‘Longe de Manaus' [livro anterior] era outro. Tinha a ver com a natureza não só da relação de Jaime Ramos com as mulheres mas também com uma história de mulheres."
Viegas quis escrever "sem devaneios do ponto de vista do policial" para os que lhe diziam: "tu não és capaz de escrever um policial mais seco e menos temperamental" (embora isso, na verdade, nunca o tenha preocupado). Mas havia, de facto, o peso de "Longe de Manaus" (2005), pelo qual recebeu o Grande Prémio de Romance e Novela da APE. "Não se pode esquecer que estive um ano para voltar a escrever", diz. O êxito surpreendeu-o e bloqueou-o. "Longe de Manaus" foi "escrito à flor da pele", terminado em circunstâncias difíceis mas com grande alegria. Era mesmo o que queria dizer, o que queria escrever. "Sente-se no livro uma alegria muito forte. Mas nunca esperei o retorno, quer institucional quer de público. Fiquei bloqueado durante ano e meio. A única maneira de ultrapassar isso era evitar a marca de ‘Longe de Manaus': um certo desvario, longos monólogos do Jaime Ramos."
Em "O Mar em Casablanca" desapareceu essa alegria. Jaime Ramos enfrenta a idade, a saúde, a morte. Alguns dos problemas de Ramos são também problemas de Viegas, confessa o autor.
Os derrotados da vida
Dito isto levanta-se, vai até à secretária e traz um guião de um filme. É a adaptação de "Longe de Manaus" feita por guionistas brasileiros. Foi a surpresa de ver alguém a pegar num dos seus livros e a dizer-lhe "isto dá para fazer um filme!" que lhe deu outra noção da história. Sentiu necessidade de construi-la de forma mais visual do que nos romances anteriores ("As Duas Águas do Mar", "Um Céu Demasiado Azul", "Um Crime Capital", "Morte no Estádio", "Um Crime na Exposição" e "Longe de Manaus"). Por isso o livro inicia-se com Jaime Ramos debruçado sobre o rio numa noite de nevoeiro. Lemos como se estivéssemos a ver um filme.
"Mesmo sem experiência em relação ao cinema quis marcar os planos. Este plano da ponte, este plano do hotel, este volta atrás, volta à frente, o plano da chegada do barco à quinta no Douro. Enquanto estava a escrevê-lo este livro era mais visual do que literário. É também mais fotográfico do que ‘Longe de Manaus'. Aqui há uma presença forte do olhar."
Nesta intriga, onde um cadáver aparece no Vidago e outro numa quinta do Douro, há uma relação profunda com os lugares da infância do autor. "É curioso, na minha cabeça o Jaime Ramos não tem uma terra. Ele é dali. É uma mistura de homem das serras no meio do Douro", afirma o escritor que sempre achou que o Douro seria lugar fantástico para um policial. "Por outro lado, o Vidago era um território da minha infância e da minha adolescência. O Palace foi sempre lugar de esconderijos, ninguém imaginava que as pessoas se poderiam esconder num hotel tão bonito, no meio dos bosques, onde ninguém vai. Ainda por cima marcado pelo facto de a sua inauguração ter estado marcada para 6 de Outubro de 1910. É um hotel dos últimos homens da monarquia e dos primeiros da república. Um sítio extraordinário."
Pelas páginas do romance passa, então, um olhar sobre a velha aristocracia do Douro. "Uma personagem diz: ‘Quando o senhor pensa na revolução, pensa no 25 de Abril. Eu não, penso em 1830.' E ainda há gente assim. São os derrotados". Viegas gosta dos derrotados. Acha que a derrota desperta virtudes. Acalma as pessoas. Impede-as de cometer erros graves. "Tenho este fascínio pelos derrotados da revolução liberal e irei ter mais tarde [num próximo livro] um fascínio pelos derrotados da revolução de Abril. Não um fascínio amigável, mas um fascínio com personagens. Vivo a construção dessas personagens à maneira do Lampedusa porque há ali um mundo fascinante e nem todo ele é desagradável. O que é mais perigoso..." [Risos]
História e biografia
Quando terminou "Longe de Manaus", pensava prosseguir as aventuras de Jaime Ramos em Cabo Verde. Isso não aconteceu. "Gostava muito de fazer esse passeio por toda a África de língua portuguesa, mas de repente as histórias vêm bater-nos à porta".
Apareceu-lhe então uma história "pequenina" sobre portugueses na Venezuela pela qual se apaixonou e desviou-o do caminho. A esta juntou-se outra história que o comoveu, um dos episódios mais negros do pós-colonialismo e da história de Angola, o golpe de 27 de Maio. Mas o que o levou a arquitectar "O Mar em Casablanca" foi a história de um espião português cuja vida o inspirou para criar a personagem Adelino Fontoura. Trata-se de um homem dos serviços de informações militares que foi membro do Partido Comunista. A determinada altura foi obrigado a desaparecer e reapareceu anos mais tarde.
"Pensamos que isto só acontece nos livros de John Le Carré mas há histórias de pessoas que passaram pelos serviços de informações portugueses que davam para compor personagens. Este caso é um deles."
É a personagem Adelino Fontoura que leva a que o inspector Jaime Ramos se confronte com o passado. Estiveram os dois na guerra em África, os dois transmontanos, e um dia Adelino desaparece, Jaime pensa que morreu. Mas muitos anos mais tarde, quanto tenta descobrir quem matou um jornalista português e um cidadão angolano, dá de caras com o amigo e segue-lhe os passos. Afinal Adelino Fontoura era um espião dos serviços de informação militares, que passou pela Guiné, que passou por Angola e cuja biografia se pode acompanhar no livro até depois do 25 de Abril. Jaime Ramos constrói o puzzle.
"Se no ‘Longe de Manaus' há uma personagem sem história, uma personagem cuja biografia Jaime Ramos vai reconstruir, em ‘O Mar em Casablanca' não só o inspector vai reconstruir a História como vai encontrar uma personagem que oficialmente não tem história. O que é um desafio maior e só pode resolver-se se isso estiver cruzado com a própria biografia de Jaime Ramos", explica Viegas.
E a história de Jaime Ramos passa por África. Esteve na guerra e este foi um dos acontecimentos que mais o marcaram. A novidade, em relação à obra de Viegas, é que se até aqui o escritor mostrava que os portugueses ali tinham sido felizes, agora fala-nos dos traumas (o 27 de Maio de 1977 em Angola, "momento dramático e ainda por esclarecer"), conta histórias de quem foi para África fazer a revolução (uma personagem, Isabel, podia ser Sita Valles, militante do PCP que terá sido assassinada em Luanda em 1977) e daqueles que mais tarde regressaram a Portugal, os retornados.
"Do ponto de vista literário é difícil encontrar histórias tão fascinantes na História contemporânea portuguesa como estas", acredita. "Um país pequeno como o nosso, que em quatro meses recebe 750 mil portugueses que regressam de África, acolhe-os e em dois anos acaba por absorvê-los e por se transformar graças a eles. É um acontecimento central essa revolução que os retornados operaram em Portugal mudando tudo, os costumes, os hábitos alimentares, a ética no trabalho. São histórias fantásticas."
Tal como são fantásticas as histórias dos portugueses que foram lá para fora, como Adelino Fontoura e outras personagens do livro que se fixaram em locais improváveis como o delta do Orinoco ou Mato Grosso, no Brasil, ou ainda Chaco, Argentina ("território de generais loucos, de guerras, da guerrilha nos anos 60, de contrabando e de solidão").
"Esta coisa de fugir da pátria é um tema recorrente da literatura portuguesa. Nos anos 60 e 70 fugia-se para o exílio, fugia-se da guerra. Mas este não é um fenómeno localizado no tempo, acompanha Portugal ao longo da História. Há sempre gente que foge mas mantém relações normais com Portugal. Só não quer estar cá. Não podem fazer como o Tom Jobim". Explica: "Quando vivia em Nova Iorque o compositor brasileiro queria voltar para o Brasil e conta-se que o amigo Vinicius ficou preocupado. Fez-lhe uma visita a Nova Iorque e disse-lhe: ‘Tom você não pode ir para o Brasil. Aqui é maravilhoso, aquilo lá é uma merda.' E o Tom respondeu: ‘Acho que você tem razão. O problema é que isto aqui, Nova Iorque, é bom, é. Mas é uma merda. Agora aquilo é uma merda, é. Mas é bom.' E nós portugueses não temos essa capacidade. Nós dizemos: ‘Isto é bom. É pá, mas é uma merda.'"