"Caderno Afegão", segundo livro de Alexandra Lucas Coelho (ALC), sai naquela que é de momento a colecção de referência de "literatura de viagens" no nosso panorama editorial, com o cuidado de fabrico que distingue editora (Tinta da China) e colecção (capa dura, ilustração com motivo de inspiração vagamente "persa", fitilho). Sendo ALC jornalista, o título sugere o bloco-notas do trabalho de terreno, mas ao mesmo tempo, por "efeito de colecção", o diário em que um sujeito não sujeitado à rigidez dos códigos da reportagem se nos dá a ver em grau variável de impudor - e podemos chamar a isto "literatura".
Assim, na p. 277 lemos: "o sol queima e apareceu-me o período". Não há muito disto, desenganem-se os leitores ávidos de intimidades. O que há, sim, é um livro escrito na primeira pessoa por uma repórter, um livro que, dir-se-ia, visa demonstrar "in actu" que a vida de repórter não é para meninas. Mais a mais no Afeganistão, terra de homens (e mulheres...) de barba rija.
Desde a primeira página, no aeroporto do Dubai, ALC fala-nos pois dos problemas da sua condição de repórter-mulher naquela parte do mundo: "Esqueci em Lisboa o lenço que ia pôr quando saísse do avião. Compro o mais discreto que encontro" (p. 13). Se há um veio que percorre o livro é o empenho na descrição da vida das mulheres afegãs, bem patente no esforço para traduzir em tropos deceptivos a burqa que cobre a grande maioria delas: "sacos" ou "balões" vazios pendurados em cabides, mulheres que deixam de ser pessoas para serem "volumes" (p. 83), mulheres que parecem "fantasmas" (p. 203) quando desaparecem - e "desaparecem mesmo" (p. 216) - dentro da burqa, e a surpresa de ver que afinal lá dentro há uma pessoa: "Depois levanta a burqa e aparece uma rapariga esperta a sorrir" (p. 203).
"Tudo parece terrivelmente errado. Errado estarmos aqui" (p. 236), diz ALC quando se depara com a opulência dos estrangeiros na mais cara Guest House de Cabul. O próprio país, porém, parece uma vasta teoria de erros e desastres, em grande medida por ser a demonstração prática da impossibilidade de aprender com "as lições da História" (ALC parece aliás acreditar mais na possibilidade de o passado ser "o melhor argumento contra o presente" (p. 67) do que boa parte das histórias que conta). Um e outro afegão letrado afirmam que "a comunidade internacional não leu a história do Afeganistão. Devia ler e aprender" (p. 229). Quanto aos afegãos, como aprendê-la se poucos são os que sabem ler? E assim, afegãos e estrangeiros parecem condenados à repetição infindável do erro.
Erros e desastres vêem-se por todo o lado. Mas sobretudo cheiram-se: Cabul é a cidade com "a maior quantidade de matéria fecal no ar do mundo" (p. 47). E no bairro dos refugiados de Herat "cheira tão mal que tentamos não respirar. É como se tudo estivesse podre" (p. 88). O outro cheiro inesquecível de Cabul é, porém, o das rosas: "Nunca vi tão forte dedicação às flores" (p. 71). A bem dizer, o livro progride entre a merda e as rosas, ou entre o trauma contínuo e a revelação pontual ou duradoura (em fundo, cenas de "Apocalypse Now": "O céu treme. Trânsito de aviões, talvez explosões, ao longe", p. 191). Esta oscilação é reconhecível nos espaços institucionais objectos de análise: o Centro Ortopédico de Cabul, radiografia de uma nação acidentada; a livraria e o Museu de Cabul, ou de como a versão taliban da iconoclastia do islamismo pode conduzi-la à caricatura; e, no momento mais doloroso do livro, o Hospital de Kandahar. Ou melhor: a ala feminina do Hospital, uma vez que mulheres e homens não se misturam. E o espectáculo, minucioso e devastador, da desigualdade, do preconceito e do obscurantismo.
Não surpreende que o percurso por loci institucionais modernos active de forma mais nítida na autora um discurso também moderno: o feminista. Como não surpreende que ele ocorra sobretudo em situações reactivas, num país em que os homens "em mim só vêem uma mulher, e isso é quase nada" (p. 168). Tudo isto ganha resolução ético-política numa passagem esclarecedora: "Tudo neste mundo desafia a capacidade relativizadora da antropologia pós-pós-colonialista. É um mundo activamente tribal, em que os dóceis, os diferentes, os homossexuais e as mulheres pagam um alto preço para continuarem vivos, e muitas vezes morrem" (p. 170). Não é que ALC não saiba praticar a difícil modéstia da descrição etnográfica, por exemplo a propósito do pão espalmado local: "O pão, aqui, é mesa, prato e talher" (p. 122). O ponto é contudo o carácter inevitável (e muito reconhecível no discurso feminista ocidental) do apelo às virtudes cognitivas, e ético-políticas, do etnocentrismo: enquanto feminista, i.e, liberal burguesa e pós-moderna (parafraseio Rorty), ALC não consegue deixar de rejeitar as implicações políticas do relativismo. E é este o ponto em que a jornalista reserva a um "caderno afegão" que será um livro de "literatura de viagens" o que não confia a um bloco-notas publicável neste jornal, já que a ética do repórter é, ao invés, relativista...
ALC parece ver a saída para este "desgosto afegão" numa espécie de encontro imediado com a Natureza, e daí a inteligência com que a visita aos Budas de Bamyan e ao lago de Band-e-Amir surge no final de viagem e livro. Na viagem para Bamyan a Natureza vai emergindo da civilização, assim que o mundo das cidades desaparece. As mulheres andam aí com a cara descoberta - como na Natureza deveria ser - e "Como na índia, são [elas] que dão cor à paisagem. A paisagem está quieta e elas estão em movimento. É uma cena viva" (p. 294). Ou ainda: "Nada fere a vista. Tudo é um todo" (p. 295). E, por fim: "Akil quase canta, e nós também. O mundo é grande, estamos vivos, que privilégio" (p. id.). O perfume triunfa enfim sobre o fedor, mas à custa da "fuga às cidades", onde como sabemos as figuras do todo são de harmonia difícil: porque são políticas, tanto quanto estéticas, exactamente como, mas ao invés, a "cena viva" da natureza afegã é política por ser só estética. Ou seja: por ser uma epifania individual não traduzível já em emancipação, apesar de todas as (belas) aparências em contrário.