David Marçal aparece em palco, para apresentar o espectáculo: cientistas a dizer piadas, o que é insólito, avisa desde logo. "A comicidade deste espectáculo foi verificada por uma série de rigorosos testes realizados em laboratório", assegura. "Quem não pagou bilhete, no final tem de bater palmas."
A entrada é livre, pelo que, claro está, todos vão ter de bater palmas. Não é um grande esforço, pois estes cientistas vão dizer piadas - a começar por David Marçal, doutorado em Bioquímica no Instituto de Tecnologia Química e Biológica (ITQB) de Oeiras, que se rendeu à escrita de humor com fundo científico. Primeiro noInimigo Público, agora em espectáculos destand-up comedy e peças de teatro.
Cientistas de Pé é uma dessas criações. A estreia oficial é hoje às 23h30 no anfiteatro ao ar livre da Fundação Gulbenkian, em Lisboa. Sete cientistas escreveram os textos que voltam hoje a atrever-se a dizer em palco, como comediantes. David Marçal coordenou a escrita e, volta e meia, aparece no palco a fazer a passagem entre os cientistas-actores.
João Damas, bioquímico de 24 anos, a fazer o doutoramento ITQB, é o primeiro. É um agnóstico, diz de si próprio o mais novo dos Cientistas em Pé. "Mas às vezes isto de ser agnóstico é chato. Eu adorava acreditar na reencarnação. Já estou a imaginar, deixava a minha vida de bolseiro de investigação, suicidava-me e depois era só esperar que reencarnasse no filho de um gestor de um banco, do BPN."
Mesmo agnóstico, João Damas foi à missa. "Primeira leitura, o Génesis! "No princípio, Deus criou os céus e a Terra." Só isto? Então e a composição da Terra? Onde é que está o "Deus criou uma massa sólida, aproximadamente esférica, com 6 milhões de triliões de quilogramas"?" Depois, a parte da luz. "Houve luz?! Assim? Deus não podia ter mandado incluir uma nota de rodapé acerca da dualidade onda-partícula dos fotões; ou da velocidade a que a luz devia andar?"
Fora de brincadeiras, João Damas, a primeira vez nestas andanças, não esconde o nervosismo. "Chego ao palco, vejo as pessoas, fico um bocado nervoso, mas, conforme vou dizendo o texto, vou ficando mais calmo." Levou o assunto a sério, ou não tivesse ido até à missa com David Marçal e o actor Romeu Costa, a quem coube a direcção de actores. "Chegámos a ir à missa os três fazer trabalho de campo."
Bruno Pinto, outro dos Cientistas em Pé, é biólogo e fala de astronomia: "Sempre tive curiosidade pelas perguntas para as quais ainda não existem respostas: o que é que havia antes do Big Bang? O que é que existe para além dos limites do Universo? Como é que o Alberto João Jardim ainda governa a Madeira?" Sofia Leite, bioquímica, fala de sexo. Sofia Vaz, doutorada em Filosofia do Ambiente, centra-se no maior problema ambiental do mundo (o que quer que esteja a pensar, não é esse...). Daniel Silva, a fazer o doutoramento em Bioinformática, concentra-se numa ciência oculta, o futebol. A mexicana Ivette Pacheco, a doutorar-se em Biotecnologia, fala de ratinhos e de Alzheimer, esclerose múltipla e Parkinson, "coisas boas porque é o meu trabalho". E Sandra Mateus, socióloga, "a ave rara dos Cientistas em Pé", dedica-se às ciências leves.
Tudo começou no ano passado, quando David Marçal se candidatou a uma bolsa de pós-doutoramento na Fundação para a Ciência e Tecnologia. Carlos Fiolhais, físico da Universidade de Coimbra e divulgador científico, é o seu orientador. Com a bolsa, propôs-se usar o teatro e o humor para comunicar ciência. Não se ficou pela stand-up comedye começou a criar duas peças de teatro para o Museu da Ciência da Universidade de Coimbra, relacionadas com a exposiçãoDarwin 150, 200, que celebra os 200 anos do nascimento do naturalista e os 150 da publicação da teoria da evolução.Stupid DesigneNascer da Evolução estão hoje em cena em Coimbra.
Enquanto Marçal avançava com o seu projecto, Ana Godinho, comunicadora de ciência do Instituto Gulbenkian de Ciência de Oeiras, pensava em iniciativas para a Noite Europeia dos Investigadores de 2009.
Fiolhais entra na sátira
David Marçal e Ana Godinho acabaram por juntar esforços e, com várias entidades, desde institutos de investigação até museus e grupos de teatro, eis que nasceu o projecto Cientistas ao Palco, submetido à Comissão Europeia como iniciativa da Noite Europeia dos Investigadores. O resultado vai estar hoje à vista, em vários espectáculos de teatro em Lisboa, Porto, Coimbra e Olhão. Mais informações estão em http://www.cientistasaopalco - como por exemplo, háspeed datingcom cientistas. Em cinco minutos, pergunte o que quiser a um deles. Outros eventos em Portugal podem consultar-se nosite que a Comissão Europeia dedicou a esta "noite".
Voltemos ao teatro a Coimbra. EmStupid Design (sessões às 19h, 21h30 e 23h de hoje), um conferencista fala sobre uma teoria alternativa à evolução: a teoria do "desenho estúpido", uma sátira ao Inteligent Design, a ideia de que por detrás da criação do Universo há uma inteligência superior. Para o conferencista, representado pelo actor Carlos António, com quem oito cientistas contracenam, o mundo é tão estúpido que teve de ter um arquitecto estúpido. "A explicação da evolução feita pelo personagem é cientificamente válida, apesar de discordar dela", conta Marçal. "Fala da árvore da vida de Darwin: diz que não representa a evolução das espécies a partir de um antepassado, mas os caminhos para não se perder até ao pombal, até à casa da sogra... No final, conclui que o que faz sentido é o "desenho estúpido"."
Até provas do "desenho estúpido" o conferencista apresenta, como os mamilos dos machos. "Há coisas que, para serem mesmo estúpidas, têm de ter sido pensadas", ironiza o cientista humorista. Se não está convencido, vá ver o actor Carlos António abrir os bolsos da camisa e mostrar as duas provas que tem no peito. "Os mamilos dos machos têm uma função ornamental. Portanto: para o Supremo Imbecil (Supernus Imbecilles) os mamilos são como galos de Barcelos, para pôr em cima da televisão", conclui a personagem.
A sátira à teoria da evolução continua na peça Nascer da Evolução (sessões às 21h30 e 23h), de Marçal e do biólogo evolutivo André Levy. Passa-se num mundo futurista em que a teoria dominante é o criacionismo: o médico João Honório, interpretado pelo actor profissional Cláudio Silva, faz uma descoberta aterradora: as bactérias evoluem. Prova disso é que ficam resistentes aos antibióticos. Ao divulgar esta ideia, cai em desgraça. Começa a inocular-se com o bacilo da tuberculose, toma antibióticos, pára, toma outros antibióticos, pára, até que todos deixam de fazer efeito. Vamos encontrá-lo a contar o que sabe na sua derradeira palestra.
O espectáculo é intercalado com depoimentos em vídeo da mãe de João Honório, que não concorda nada com a teoria da evolução; do reitor da Universidade de Coimbra, que aceitou recebê-lo por razões humanitárias e até científicas; ou do presidente de uma tal Faculdade de Ciências da Criação. Catorze cientistas representam as personagens entrevistadas, entre as quais Carlos Fiolhais e o biólogo Paulo Gama Mota, director do Museu da Ciência de Coimbra. Nervosos? "Fazer de actor não é muito diferente de ser professor. Tem de se manter a audiência interessada, colocar a voz", responde Fiolhais. Aliás, Paulo Gama Mota, ou melhor, o presidente da Faculdade de Ciências da Criação, diz mal de um tal... Paulo Gama Mota. "Digo que é um evolucionista empedernido. Mas foi estranho ver-me a dizer coisas tão terríveis sobre a evolução."
Ainda para Coimbra, o grupo de teatro Marionet apresenta Sr. de Chimpanzé, uma comédia de Júlio Verne, só com cientistas em palco.
Já na Gulbenkian, há mais propostas, como a peça de teatro-fórum De que Falamos quando Falamos de Cientistas, em que os espectadores substituem a certa altura os actores. Cientistas começam a fazer de actores a fazer de cientistas: o dilema de ficar em Portugal ou partir, se só vale a pena se se descobrir a cura do cancro.
No Porto (praça dos Leões), há marionetas (A Origem das Quase Espécies), uma oficina de teatro para crianças (Outras Formas de Vida) e a peçaEfeitos Secundários. Em Olhão (centro comercial Ria Shopping), os cientistas ficam fora do palco, mas as peças têm ciência. Darwin está presente emO Teatro da EvoluçãoeO Homem não é um Macaco.
Ao todo, pelo país, cerca de 80 cientistas vão entrar na pele de actores, segundo Ana Godinho, a coordenadora nacional dos Cientistas ao Palco. "O maior legado deste projecto é ter envolvido estes investigadores na comunicação da ciência ao grande público", considera David Marçal.