O regresso do profeta

Em Outubro do ano passado, quando a Academia Sueca escolheu Jean-Marie Gustave Le Clézio (n. 1940) como Nobel da Literatura, já quase ninguém se lembrava do jovem que aos 23 anos recebeu o Prémio Renaudot pelo livro de estreia, "Le Procès-verbal". (Publicado em 1963, voltou às livrarias portuguesas em Dezembro de 2008, numa edição Europa-América, com o título "O Processo de Adão Pollo" e tradução de Manuel Villaverde Cabral.) Não se compreende que uma obra importante e extensa como a sua - meia centena de títulos de ficção, ensaio e literatura para a infância - tenha uma divulgação errática em Portugal: sete livros traduzidos em 45 anos. Isto a despeito dos prémios (muitos), dos textos laudatórios que Beckett e Foucault lhe dedicaram, e de uma vida aventurosa reportada na imprensa. Natural de Nice, filho de um cirurgião britânico que regressou à Maurícia depois de uma comissão de serviço na Nigéria, Le Clézio passou a infância naquela ilha do Índico, dividindo actualmente o seu tempo entre os Estados Unidos e a Riviera francesa. O escritor tem dupla nacionalidade: britânica e francesa (e não mauriciana, como por vezes aparece escrito). As razões da sua expulsão da Tailândia, país onde trabalhou como cooperante militar no fim dos anos 1960, nunca foram devidamente esclarecidas.

"Ritour-nelle de la faim" foi publicado pela Gallimard pouco antes da atribuição do Nobel. Na sua aparente simplicidade, o título português, "A Música da Fome", é de rara felicidade: o termo ritornelo é aplicado à introdução instrumental de composições vocais como madrigais e refrões, o que faz todo o sentido numa obra de carácter fragmentário como esta.

Não obstante certa desaceleração de fôlego, pode-se dizer, sem risco de escândalo, que "A Música da Fome" é um regresso aos melhores momentos: "A Febre" (1965), "Le Déluge" (1966) e esse monumento anti-moderno que constitui a trilogia formada por "La Guerre" (1970), "Les Géants" (1973) e "Voyages de l''autre côté" (1975). A partir daí, Le Clézio concentrou-se na vida dos povos nómadas, como os berberes de Marrocos e os índios emberas do Panamá, factor que terá contribuído para desviar o foco da cena literária. A idade explicará a recente deriva autobiográfica, com epicentro na família Brun, originária da ilha Maurícia. Na realidade, os Clézio, originários da Bretanha, estão na ilha desde o século XVIII. Ethel Brun é o alter-ego da mãe do autor, circunstância que o narrador não dissimula.

A pretexto do quotidiano parisiense de Ethel, "A Música da Fome" ilumina a vida dos imigrantes desenraizados, apanhados na curva dos anos 1920-30, quando, para as pessoas comuns, bolchevismo e anti-semitismo eram conceitos difusos, num tempo em que a França começava a deixar de ser a terra dos "sem-Pátria". O preâmbulo é eloquente: "Conheço a fome, sofri-a. Criança, no fim da guerra, faço parte dos que correm pela estrada ao lado dos camiões dos Americanos, estendo as mãos para apanhar embalagens de chewing-gum, chocolates, sacos de pão que os soldados arremessam pelo ar. Criança, sinto tanta sede de gordura que bebo o azeite das latas de sardinha...". Le Clézio confronta a França com as suas responsabilidades históricas na ocupação alemã. A hipocrisia da maioria silenciosa, orgulhosa da sua "superioridade moral", conivente com os pacifistas, os defensores dos acordos de Munique, os colaboracionistas, os activistas de extrema-direita reunidos na CSAR (Comissão Secreta de Acção Revolucionária), em suma, com Pétain e a essência do nazismo. Tudo no mesmo saco: "os oportunistas, os corruptos, os saqueadores [...], os realistas, os fourieristas, os racistas, os suprematistas, os misticistas...". Não havia como escapar, o regime de Vichy atolou a França num lodaçal. Ethel sabia que o seu mundo se desmoronara, ficando "reduzido à água de um canal". Vagueava como uma sombra, Nice era agora uma cidade de opereta, "pano de fundo dos ingleses do tempo de Lord Brougham & Vaux, russos do tempo da imperatriz e de Marie Bashkirtseff, cidade indiferente e cruel, sobreexposta ao sol e ao vento...". A narrativa é um ajuste de contas com esse passado de vergonha.

O aspecto mais interessante é o ponto de vista do narrador. Le Clézio escreve "de fora", isto é, como estrangeiro. É o francês "ultramarino" capaz de distância crítica para lavar as mãos da herança de Céline.

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