Os limites do controlo

A história do cinema está cheia de argumentistas que se decidiram a passar à realização, com resultados bastante variáveis. Charlie Kaufman, um dos mais inventivos e originais argumentistas americanos contemporâneos, não é excepção a essa regra, embora no seu caso a coisa tenha sido um pouco mais acidental: "Sinédoque, Nova Iorque" começou vida como um projecto de filme de terror para a Columbia que deveria ser realizado por Spike Jonze, o realizador-alma gémea que filmara "Queres Ser John Malkovich?" e "Inadaptado." Mas o que era suposto ser um filme de género transformou-se durante a escrita noutra coisa, muito mais "kaufmaniana" mas também muito mais inclassificável. E Jonze, retido na produção conturbada de "O Sítio das Coisas Selvagens", sugeriu ao amigo que fosse ele próprio a realizar o que, sem ser um filme de terror, é um filme sobre o terror - sobre o terror de morrer, sobre o terror de passar pela vida sem deixar marca, sobre o terror da irrelevância e do fracasso e da sensação de termos desperdiçado o nosso tempo neste mundo.


É esse terror que persegue quotidianamente o encenador teatral Caden Cotard (papel à medida do enorme Philip Seymour Hoffman), neurótico, inseguro, hipocondríaco, aprisionado num corpo em lenta decomposição mas também num casamento que se desintegra em lume brando, que recebe do nada uma bolsa de mecenato cultural e decide investi-la na criação da peça teatral para acabar com todas as peças teatrais. Um simulacro que se desenrole em tempo real, tal como a vida, num enorme armazém abandonado que se transforma numa cidade dentro da cidade à medida que a obra monumental de Caden vai ganhando corpo e estrutura - mas que, ao fim de 17 anos, continua em ensaios e ainda não foi mostrada ao público, e que se transforma progressivamente num espelho da própria vida amargurada do encenador que tanto quis ser alguém que se resumiu progressivamente ao anonimato.

Desde a compactação de 25 anos de narrativa numa espécie de único longo dia onde Caden vai envelhecendo e rejuvenescendo consoante as necessidades da história até ao vertiginoso e infindável jogo de espelhos entre a vida e a arte, passando pela casa que está permanentemente em fogo ou pela capacidade de tornar o surreal estranhamente credível, percebe-se rapidamente que nenhum outro autor contemporâneo poderia ter escrito "Sinédoque, Nova Iorque". Mas ser um argumentista de excepção não implica ser um grande realizador, e o que sobra em talento de escrita a Kaufman falta-lhe em capacidade de visualização. Kaufman não tem o talento de Spike Jonze e Michel Gondry para construir um universo visual em imagens e limita-se a ilustrar aplicada e fielmente as palavras que escreveu, deixando "Sinédoque, Nova Iorque" tombar numa espiral claustrofóbica que nenhum rasgo visual vem aligeirar. Esse lado de "teatro filmado" não deixa de ser adequado a um filme que vai muito lentamente contaminando uma realidade reconhecível com uma série de "non-sequiturs" tão absurdos quanto arrepiantes, mas não impede de sentirmos que faz aqui falta uma espécie de válvula de escape - como se Kaufman tivesse, ele próprio, deixado contagiar-se pela espiral neurótica de Caden e se mostrasse incapaz de lhe escapar, como se a sua necessidade de controlar cada um dos elementos desta meta-narrativa desdobrada esbarrasse na sua impossibilidade de o fazer constantemente. Querer ser demiurgo tem destas coisas.

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