"Um inglês, um francês e um americano entram numa colecção. E diz o inglês..." Esta é a sugestão de Ricardo Araújo Pereira para a promoção da nova colecção de literatura de humor que coordena para a Tinta da China. Leia-se esta possibilidade no universo mental de um Gato Fedorento que está a compilar, investigar, rever e prefaciar obras de humor e acrescente-se-lhe o seu pretexto: os primeiros títulos da colecção serão "Os Cadernos de Pickwick" de Dickens, "Jacques, o Fatalista", de Diderot, e uma antologia de textos de Robert Benchley.
Trata-se, afiança o humorista, "de bom 'marketing', na medida em que associa os clássicos do humor ao enunciado das anedotas mais rasteiras. Vivemos tempos difíceis e não convém alienar público". A nova colecção da Tinta da China surge na esteira de outra lançada no ano passado, dedicada à literatura de viagens e coordenada por Carlos Vaz Marques.
Em vésperas de partir para a Feira Internacional do Livro de Frankfurt, em Outubro de 2008, a editora Bárbara Bulhosa tinha uma ideia e um desafio - lançar uma colecção de clássicos, coordenada por Ricardo Araújo Pereira. Em Janeiro já havia uma proposta: 700 páginas de Charles Dickens no seu melhor registo satírico, um texto "nunca traduzido integralmente em português" (a edição portuguesa existente tinha menos 200 páginas do que o original, cortes decorrentes de uma prática comum nas editoras nacionais nos anos 1940), agora traduzido por Margarida Vale de Gato e que Bulhosa está a ler. "É hilariante". E grande. Longo. Possivelmente como a vida da colecção, que não tem número finito de obras para editar nem prazo previsto - a não ser o lançamento do primeiro livro, no início de Outubro.
A extensão de algumas das obras, não cometendo o sacrilégio de sugerir que se medem às páginas mas assumindo o seu poder de intimidação para o tal público que Ricardo Araújo Pereira não quer alienar, foi uma das preocupações da Tinta da China. A simples visão d' "Os Cadernos de Pickwick" deu à editora a sensação vertiginosa das contas de cabeça e dos estudos de mercado. "Os custos de tradução são altíssimos, viabilizar estes livros é complicado". Solução? Acreditar na qualidade intemporal deste clássico, mas também numa estratégia já seguida quando da colecção de livros de viagens - investir nas capas, "algo que se distinga no nosso mercado", "para conseguir que estes livros sejam lidos", explica Bárbara Bulhosa. Assim surgem as capas, duras, de Vera Tavares, mas também os prefácios do coordenador.
Os senhores que se seguem
Gizar uma colecção de escrita de humor e o seu inerente processo de escolha tem qualquer coisa de risco. Achará Ricardo Araújo Pereira que ainda se vão rir dele pelos motivos menos habituais, sem "sketches" ou imitações de permeio, mas sim pelo que incluiu e sobretudo pelo que excluiu? "Em princípio, acho sempre que se vão rir de mim. A minha vida é uma tentativa de fazer o menor número possível de figuras ridículas. Até agora, não posso dizer que tenha sido especialmente bem sucedido", responde. "Quanto à colecção, é um projecto aberto, ou seja, não se sabe bem quando acaba - o que é tranquilizador: assim, se alguém disser que não editámos determinado clássico essencial do qual nunca ouvi falar, posso sempre dizer que era justamente o próximo a ser editado, e que a demora se deve ao facto de eu estar a supervisionar a tradução de modo particularmente cuidado".
Dizem por aí que o humorista, colunista está a preparar-se afincadamente para cada prefácio. É já um perito, diz Bárbara Bulhosa, mas não parou por aí e terá ido às compras para cimentar melhor o átrio da "sua" colecção: livros, investigação, pesquisa. Tudo para não dar só o nome e as escolhas. "Meu Deus, o que para aí vai", arregala-se Ricardo Araújo Pereira, por e-mail. Rápido, como sempre, a desfazer elocuções hiperbólicas sobre a sua pessoa. Nega que vá "escrever umas coisas de fazer inveja ao Harold Bloom". Quer apenas apresentar os textos aos leitores de forma, vá, competente.
O senhor que se segue a Dickens será Diderot, com a tradução de Pedro Tamen, e depois está prevista a antologia de textos de Robert Benchley. A ele surge associado "um conjunto de excelentes humoristas que têm em comum, entre outras coisas, o facto de terem sido colunistas da 'New Yorker'": James Thurber, S. J. Perelman e Dorothy Parker, elenca Araújo Pereira, esperançoso de que os direitos de publicação para Portugal sejam obtidos.
Outro potencial candidato, além de títulos portugueses ainda em estudo (obras mais antigas sem edição actual, Camilo Castelo Branco, por exemplo), é Jaroslav Hasek e as suas "Aventuras do Soldado Schweik" (os títulos das edições portuguesas mais antigas divergem). O texto foi, em tempos, interpretado por Raul Solnado e Ricardo Araújo Pereira recorda que o actor indicou essa obra como um dos seus trabalhos preferidos - o registo televisivo perdeu-se. "Sobra a consolação de, em breve, podermos ler o texto em que a peça se baseava", na versão integral, sublinha o coordenador da colecção.
A Tinta da China vai então recuperar clássicos, reembrulhá-los e sugerir a sua leitura à luz da actualidade. Maravilhado com a intemporalidade e eficácia humorística "através da simples justaposição de palavras num papel", Ricardo Araújo Pereira deixa-nos com uma análise comparativa Liga Inglesa/Literatura Clássica: "Vejam como são actuais, por exemplo, as observações sobre a disputa política contidas na descrição da eleição de Eatanswill, ou sobre o sistema de justiça no relato do célebre julgamento do caso Bardell-Pickwick, no livro de Dickens. Mais: neste preciso momento, estou a ver o Darlington-Leeds United na Sport TV e o extremo-direito do Leeds chama-se Snodgrass, como o amigo poeta do sr. Pickwick. Este acaba de fazer um cruzamento para golo bastante poético, aliás".