Depois do seu primeiro romance, "A Blusa Romena", António Mega Ferreira (n. 1949, Lisboa) regressa com um pequeno livro sobre fotografias instantâneas de Lisboa, dos finais dos anos 80, da fotógrafa americana Amy Yoes, e volta àquela que é uma das suas obsessões maiores - o amor (título, aliás, de uma das suas obras mais conseguidas). Nem sempre as fotografias, nos 16 capítulos do livro, estão expressamente ligadas ao texto: de algumas delas pode dizer-se que são explícitas mas, na maior parte dos casos, são implícitas, num jogo de desvendamento "amoroso", entre a escrita e a fotografia. Escrever sobre o amor não é fácil. Muitas vezes descamba-se perdidamente para lugares-comuns, frases delicodoces ou, pior, para estereótipos sentimentalões. Não, o "senhor Expo-98" não se deixa cair nessa tentação.
Volta, também, com "Lisboa Song" ao registo dos labirintos da escrita em que melhor se move, o das "short stories": desde "O Heliventilador de Resende" (ed., Difel, 1985), a sua primeira aparição como ficcionista, ou "As Caixas Chinesas" (ed., Assírio & Alvim, 2002), tendo com um livro de 2001, "A Expressão dos Afectos" (ed., Assírio & Alvim), conquistado em 2002, o Prémio Camilo Castelo Branco da Associação Portuguesa de Escritores.
Há em "Lisboa Song", além da história de amor explícita entre um lisboeta e uma mulher estrangeira, uma boa dose dos temas da literatura ocidental para, justamente, explicar esse amor: a criação do mundo, a história, o tempo, os sonhos, a memória, o esquecimento, ou seja, muito daquilo de que é feita a literatura.
À luz desta perspectiva, Mega Ferreira tem como paradigma o modelo do poeta-contista-ensaísta Jorge Luis Borges. À Borges, "porque a história, esta história, que é a matriz e o múltiplo de todas as histórias de que estamos a falar, vai repetir-se" (pág., 12); "Não é o tempo, disse-lhe, não é o tempo que passa por nós, mas nós que passamos por dentro do tempo, e quase nem damos por isso, tal é a nossa pressa de permanecermos além do tempo" (pág., 22); o que somos "obedece a uma gramática que não arquitectámos, será a mão de Deus, ou a outra mão invisível, a de todos os sonhos que até hoje sonhámos" (idem); a arquitectura das cidades, no percurso dele e dela, "adivinhando esquinas para lá de portas, dramas além das janelas, amores fugazes na penumbra das casas" (pág., 26) - tudo, ou quase, é escrito sobre a matriz do universo borgesiano.
Até no tema do amor, o autor de "Lisboa Song" não se afasta de Borges. Se para o argentino, quando fala do amor, "as coisas duram mais do que as pessoas. Quem sabe se a história acaba aqui. Quem sabe se não tornarão a encontrar-se", para Mega Ferreira "o nosso amor é que é (...) talvez a vida não nos mereça e é isso que faz do nosso amor ainda possível" (pág., 26).
Os mitos filosófico-literários - tão característicos de muitos contos de Borges (entre muitos em "O Aleph", o conto "O Imortal") - também passam por "Lisboa Song". Ulisses, o exílio de Ariane e maldição do Centauro são evocados: "Deus criou o mundo com todas as coisas, disse ele, mas foi Ulisses que inventou os lugares, por todos os mares que navegou, pelo naufrágio que o atirou para os braços de Calipso, pelos cantos das sereias que os sofistas não foram capazes de decifrar, pela flecha que feriu Aquiles, pelos combates de Tróia e pelo esquecimento de Penélope, pela saudade de Ítaca, foi por isso que Ulisses inventou a cidade" (pág., 28). Que, mitologicamente, criou Lisboa. Prós? Uma escrita cristalina, oriunda de um jornalista que sabe que uma palavra vale mais do que mil imagens, directa ao coração das nossas emoções.
Contras? São belas "short stories", é verdade. Mas sabem a pouco. Se calhar é essa a sua maior dimensão...