O Museu de Arte Popular mudou de casa

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Pais de Brito frisa que o espólio está preparado para todas as hipóteses: voltar ao edifício original ou ir para outro lugar Daniel Rocha

Joaquim Pais de Brito não se lembra de alguma vez ter acontecido uma coisa destas. O espólio inteiro de um museu totalmente transferido para outro museu. Aconteceu com o Museu de Arte Popular, em Lisboa. Todos os objectos, que representam a mostra da arte popular produzida de norte a sul do país, reunida pela vontade de António Ferro durante os anos 40, em plena ditadura, foram transferidos para o Museu Nacional de Etnologia, também em Lisboa, de que Pais de Brito é director. "Sabia-se que o museu estava em obras, que tinha infiltrações, que o quadro de electricidade estava em mau estado, que não havia filtros anti-raios UV nas janelas nem alarme", disse ao P2. "Havia que criar condições."

A ordem para proceder aos trabalhos para acolher o espólio do Museu de Arte Popular (MAP) no Museu Nacional de Etnologia (MNE) chegou à sua secretária em 2006. "Fui informado em Outubro e fiz questão de ditar as minhas condições: impedir a perda de informação, não dispersar as colecções e proceder a um inventário rigoroso sobre tudo o que havia no museu, com registo fotográfico, o lugar onde pertencia, a sua proveniência, tudo. Pedi ainda para que ficasse registado o estado de conservação das peças e que nos fosse garantido orçamento para arranjar espaço próprio para receber o espólio no Museu de Etnologia e para que tivesse uma equipa de seis pessoas dedicada ao trabalho."

Condições aceites, a mudança começou. "Fez-se o trabalho mais notável que este museu já fez. Havia uma grande responsabilidade intelectual e pessoal. Este foi um acontecimento muito raro. Tinha de ser um trabalho consolidado, qualquer que fosse o objectivo da mudança. Mas nem sequer se me colocou a questão de não continuação do Museu de Arte Popular!", exclama Pais de Brito, que coordenou os trabalhos, recordando que já tinha acompanhado um processo idêntico em França, quando o Museu de Arte e Tradições Populares foi integrado no grande Museu das Civilizações da Europa e do Mediterrâneo, em Marselha.

O MNE tornou-se, assim, guardião de um tesouro no meio de uma polémica: intelectuais e figuras ligadas à museologia defendem o regresso do espólio ao espaço original, o edifício do Museu de Arte Popular, junto ao Tejo, tendo para isso reunido num abaixo-assinado já mais de 4300 assinaturas. O Ministério da Cultura reclama o espaço da frente ribeirinha para fazer nascer um novo espaço, o Museu Mar da Língua Portuguesa, apresentado ainda durante o mandato da anterior ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima.

Alexandre Oliveira, antropólogo do Museu de Arte Popular, a preparar uma tese de doutoramento sobre o espólio, foi um dos responsáveis por esta mudança que demorou nove meses a fazer. "O trabalho de identificação, inventário, limpeza, acondicionamento e transporte começou no dia 2 de Maio de 2007 e terminou no dia 28 de Janeiro de 2008, dia em que a ministra Isabel Pires de Lima saiu do Governo. Quase nove meses. Ainda pensámos que nos iam obrigar a levar tudo de volta", ironiza Alexandre Oliveira. "Ainda estamos a fazer o inventário e não vai acabar tão cedo."

Alexandre Oliveira recorda que das cinco áreas em que primordialmente o Museu de Arte Popular se dividia - Minho, Trás-os-Montes, Algarves, Beiras e Alentejo -, os objectos já só se encontravam concentrados, desde 1999, em duas das salas (Beiras e Alentejo). E o processo de recolha, na fase de mudança, foi organizado pelo tipo de material em causa: cerâmica, cestaria, mobiliário e objectos em madeira, metal, couro ou cortiça. "Esta sistematização permitiu uma uniformização das metodologias de limpeza e de expurgo. Mas para todos foi incluído, na ficha, a sua localização de origem", frisa o investigador. E sobre o valor do espólio, Alexandre remete para uma fase futura da tese: "Só o decurso da minha pesquisa permitirá equacionar fundamentadamente o valor do espólio."

Pronto para voltar a casa

"Não se sabe ao certo o número de objectos. Mas podemos dizer que estão próximos dos 13 mil", acrescenta Pais de Brito enquanto se encaminha, escada abaixo, em direcção ao espaço de reservas, agora totalmente adaptado e preenchido com parte do espólio do MAP.

Acende-se a luz. Cerâmicas de Nisa, bordadas a pequenas pedrinhas brancas e brilhantes, outras cerâmicas de todos os tamanhos e feitios. Redes e cestos, embarcações de pesca artesanal (do tamanho real à mais ínfima miniatura), fechos de coleira para o gado e centenas de objectos ínfimos preenchem as vitrinas que se estendem por mais de 400 metros quadrados. As peças alinham-se todas com um denominador comum, uma pequena etiqueta, uma bolinha vermelha, que marca todas as peças originárias do Museu de Arte Popular.

Noutra ala das reservas do Museu de Etnologia estão os têxteis. "Eram a parte do espólio mais bem tratada e catalogada." São dezenas de pequenas gavetinhas metálicas com paninhos alvos bordados, envoltos em papel de seda. E armários, que se estendem por todo o comprimento da sala, fechados, que escondem trajes tradicionais, roupas de cama e casa e peças de maior porte.

"Fiz questão que fossem todas marcadas. Está tudo preparado para voltar a casa. Ou para servir o fim que o ministro indicar", diz o director.

"Ainda falta arrumar a colecção de ex-votos e objectos ligados à vida religiosa", lembra Pais de Brito. "Hoje sabe-se mais sobre o Museu de Arte Popular do que alguma vez se soube."

Dos expositores do Museu de Arte Popular - construído na década de 1940 tendo em conta as particularidades de alguns dos objectos e considerado por muitos especialistas como de grande valor museológico - foi levado apenas um exemplar de cada para o Museu de Etnologia. "O material expositivo foi desenhado pelo arquitecto Jorge Segurado. Guardamos um exemplar de cada um dos tipos de expositores existentes, os restantes ficam à guarda do Instituto dos Museus e da Conservação."

Ainda sobre o espólio fotográfico do Museu de Arte Popular, onde se encontravam fotografias tiradas nas várias regiões do país sobre objectos e práticas populares, Alexandre Oliveira diz desconhecer o seu paradeiro.

Museu preso ao passado

"Um museu destes gerava ambiguidade. Deu sempre a impressão de ser aquilo que foi - uma ode ao antigo regime - e ele foi sendo outras coisas. Arrastou sempre o que tinha sido antes e isso não o beneficiou", explica Pais de Brito, criticando o facto de o Museu de Arte Popular nunca ter conseguido destacar-se da ideia inicial que esteve na base do seu nascimento, em plena ditadura, pelas mãos de António Ferro, o homem forte da propaganda do regime de Salazar.

O sonho de Ferro era construir um Museu do Povo que reunisse as particularidades da arte popular de norte a sul do país, enaltecendo as práticas artesanais e a cultura das tradições. A ideia de Ferro acabaria por ser adaptada a uma versão mais simples e económica, com projecto do arquitecto Jorge Segurado. Nascia assim o Museu de Arte Popular, inaugurado a 15 de Julho de 1948.

Maria Barthez, investigadora da Universidade Nova, especialista em arte popular, lembra que António Ferro congregou em torno da ideia do Museu do Povo Português, que acabaria por se chamar Museu de Arte Popular, uma série de artistas modernistas como Tomás de Melo, Fred Kradolfer, Bernardo Marques, José Rocha, Carlos Botelho, Emmerico Nunes, Estrela Faria e Eduardo Anahory, muitos deles autores dos murais modernistas que ainda se mantêm nas paredes do edifício da frente ribeirinha, que deverá dar lugar ao novo Museu Mar da Língua.

Apesar de o ministro da Cultura já ter dito publicamente que os murais serão recuperados e incluídos no novo projecto, o modo como essa integração vai acontecer ainda não foi explicado.

Fechado desde 1998, o Museu de Arte Popular encontrava-se numa fase de recuperação do edifício, construído para a Exposição do Mundo Português. Tinha sido abrangido por verbas do Programa Operacional para a Cultura e já ia na terceira fase das obras de recuperação, quando a ex-ministra Isabel Pires de Lima decidiu anunciar que o espaço junto ao Tejo seria para um Museu da Língua, semelhante ao de São Paulo, no Brasil.

Ainda não se sabe quando arrancará o novo museu mas o projecto já foi aprovado em Conselho de Ministros. A empresa YDreams será responsável pelo multimédia e contactou o argumentista Nuno Artur Silva para que se encarregasse dos conteúdos. Mas segundo confirmou o mesmo ao P2, a sua colaboração ainda não tem carácter oficial: "Pediram-me para dar algumas ideias do que poderiam ser os conteúdos do novo museu. Mas até hoje não se decidiu mais nada", disse Nuno Artur Silva sobre os primeiros contactos que fez com a YDreams, acrescentando que outros autores também estariam envolvidos. O P2 tentou, nas últimas semanas, contactar a YDreams para conhecer mais sobre o que está a ser preparado para o Museu Mar da Língua, mas sem efeito.

Sem efeito ficou também o contacto com o Ministério da Cultura. Confrontado com algumas questões sobre o futuro do MAP e sobre o novo museu, o ministro José Pinto Ribeiro preferiu não acrescentar nada às declarações feitas na comissão de Cultura da Assembleia da República, a 17 de Junho, onde garantiu que o novo Museu Mar da Língua é um projecto para erguer mas que está disponível para o debate rumo à preservação do edifício e dos painéis modernistas.

Raquel Henriques da Silva, historiadora de arte e ex-directora do Instituto Português de Museus (actual Instituto dos Museus e da Conservação), um dos nomes mais destacados da luta em defesa do Museu de Arte Popular, frisa a importância do espólio da instituição: "Tem colecções muito importantes e reflecte a visão da cultura popular. E temos uma nova geração interessada nesta área da cultura quer em termos de trabalho quer em termos expositivos", defende a especialista, para quem só no espaço para que foi criado, junto ao Tejo, o Museu de Arte Popular faz sentido. A investigadora é uma das mentoras da petição que defende a classificação do edifício e a manutenção do espólio no lugar de origem, já entregue ao ministro da Cultura.

"Estamos perante uma obra que funciona como um todo. A nível de construção e desenho encerra um tipo de arquitectura praticada pelo Estado Novo. Constitui um documento único para a investigação contemporânea sobre a política do Estado Novo", diz ainda Maria Barthez. A investigadora lembra que nem na ditadura este museu foi amado.

"O museu já era mal-amado no Estado Novo. Nos anos 50 já tinham de fazer obras e já não havia dinheiro nessa altura. Foi sempre um museu inacabado. E mesmo assim era o museu mais visitado na década de 1960 a seguir ao dos coches." Nos últimos anos de existência, antes de fechar as portas, o museu recebia anualmente cerca de 32 mil visitas.

Maria Barthez alerta para o futuro da arte popular: "As pessoas não conhecem o que é a arte popular e o que se está a perder com o fim dos artesãos. Somo um país pequeno, com tanta identidade e variedade. Devíamos estimar mais isso."

Mas para Pais de Brito a relação com o Estado Novo é a principal razão pela qual o debate em torno do encerramento do Museu de Arte Popular não colhe mais apoio. Apesar de frisar que os problemas que afectavam a instituição eram muitos. "Acho pouco consistente esta forma súbita de querer pôr trancas à porta quando a porta já foi arrombada há tanto tempo. O problema do Museu de Arte Popular não é de agora. Mas parece que todos estavam satisfeitos." E questionado sobre se seria possível reinventar hoje o Museu de Arte Popular, Pais de Brito responde: "Não me posso pronunciar, já que esse debate não foi aberto."

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