Cantar, cantou sempre, desde que se lembra. Mas naquela noite foi eleita rainha das cantadeiras. Foi em 1959, tinha ela 15 anos e já cantava em festas e na escola. Guarda ainda um diploma de canto dessa altura. Com um prémio de nove escudos. Nesse ano ainda ninguém ouvira falar de Maria da Fé, nem podia ter ouvido, porque a jovem nascida no Porto a 25 de Maio de 1945 se chamava Maria da Conceição Costa Marques. E só era conhecida por Maria da Conceição, onde quer que cantasse. Ela lembra-se bem desses dias. "Participei numa revista com artistas do Porto, fiz tudo o que era possível em espectáculos", diz ao P2. "Fazia primeiras partes de espectáculos com a Amália, com a escola de samba da Maria Della Costa e com vedetas que iam de Lisboa para o Porto."
Tudo isto no Porto, claro. "A base do que eu cantava era fado, mas também canções de que eu gostava como Canção da Nazaré, de Maria de Fátima Bravo. Foram feitos dois fados para mim, para a minha idade, por um senhor que dirigia um parque infantil onde eu ia brincar aos baloiços. Com 11 anos, não era bom cantar fados de amor."
Maria trabalhava com autorização do Tribunal de Menores e quando decide vir para Lisboa tirar a carteira profissional, perto de fazer os 18 anos, teve que escolher um nome artístico diferente. "Não era permitido haver dois artistas com o mesmo nome e já havia uma fadista chamada Maria da Conceição, criadora da Casa portuguesa e da Mãe preta, que por acaso também era mulher de um guitarrista do Porto."
Sorte: o poeta Francisco Ferreira, conhecido por Radamanto (1908-1972), apresentou-a a Armando Machado, o dono da Casa Machado, e este convidou-a a ir nessa mesma noite à sua casa de fados. "Já não me deixou vir embora, contratou-me." E foi ali que, numa discussão entre Radamanto e o fadista Raul Dias, ela acabou por ficar Maria da Fé. Radamanto defendia o nome de Maria da Sé. "Talvez por ele ser um bocado mais bairrista."
Pé direito e pop-fado
Cantar já ela cantara muito, mas gravar ainda não. Até que um dia aconteceu, no Porto. "O meu primeiro disco foi um EP, com quatro fados: dois meus e dois do Fernando Manuel, que era um rapaz que cantava na Viela. Gravámos num sítio incrível, uma cave de uma casa de electrodomésticos na Rua de Santa Catarina, em frente ao Majestic, que era do Arnaldo Trindade. Gravei Eu canto fado e Sou tua, do Casimiro Ramos." O autor, que era guitarrista, mais tarde contou-lhe que estava a ouvir rádio enquanto fazia a barba, ouviu-a e ficou surpreendido. Pensou que a Amália tinha gravado o fado dele.
Mas não era Amália, era Maria da Fé, que gostava muito dela e evitava comparações. "Eu apareci com a Amália viva e bem viva, e isso para mim é que é muito importante. Ela era o meu ídolo, mas chegaram a dizer que eu era a segunda Amália, a nova Amália. E eu dizia sempre, ainda digo: não sou a segunda Amália, sou a primeira Maria da Fé."
Da Adega Machado, onde ficou dois meses, passou à Parreirinha. Uns turistas que a ouviram foram dizer a Teodoro dos Santos, que a convidou para cantar no Casino Estoril. "Costumo dizer que entrei com o pé direito. A Adega Machado estava no auge. A Parreirinha era uma casa de grande prestígio. E o Casino Estoril foi uma honra."
Espectáculo de variedades com um apontamento de fado, 14 dias. Com a orquestra de Ferrer Trindade. "Depois voltei para a Parreirinha, mas tive um interregno na minha vida e voltei para o Porto. Mas já não me adaptava e regressei a Lisboa. Foi então que foi cantar para A Tipóia, com um grande senhor que se chamava Manuel de Almeida."
E ali recebeu mais um convite, que a fez sair pela primeira vez do país, em 1965. "Foi de um português que tinha um restaurante em Newark que se chamava Estoril Lounge. Estive lá 16 dias, mas só cantava às sextas, sábados e domingos à tarde. Não gosto de viajar, mas foi muito bom para mim." Esse ano foi também o da gravação do polémico Pop-Fado. "A ideia foi do José Duarte e de um senhor chamado Raul Calado, homens do jazz, que me ouviram cantar na Tipóia. Foi gravado com a guitarra portuguesa do Fontes Rocha, bateria e guitarra eléctrica. Tinha quatro fados, mas só gravei três: Lugar vazio, criado pelo Tony de Matos; o Fado faia, criação da Berta Cardoso, e O namorico da Rita. Ficou por gravar a voz, porque me constipei, na Janela do rés-do-chão, um fado marcha, fado canção. Ficou só o instrumental."
Se tivesse menos 20 anos...
No regresso da América, vai para a Taverna do Embuçado. E é convidada para ir ao Brasil por uma temporada. Mas entretanto conhecera no Embuçado aquele que é hoje o seu marido, o compositor José Luís Gordo. "Quando fui para o Brasil, já ia com a cabeça à toa. Custou-me muito cumprir aquele contrato e contava as horas, minutos e segundos para voltar. Estávamos apaixonados, eu sofria por ele, ele sofria por mim." Casaram em 1968 e, quase em simultâneo, o disco com o fado Valeu a pena torna-se um sucesso.
Outro sucesso seu foi Cantarei até que a voz me doa, escrito por José Luís Gordo. A primeira gravação, para a Valentim de Carvalho, não saiu do anonimato. Só à segunda, já com o fado musicado por Fontes Rocha, feita para a Rádio Triunfo, triunfou de vez. "A partir daí nunca mais parei. Fiz espectáculos por todo o sítio e não fiz mais porque sou um bocadinho preguiçosa e porque tenho medo de andar de avião." Numa digressão à Austrália e ao Brasil, custou-lhe muito deixar a primeira filha, ainda com dois anos. E no Brasil, onde chegou a gravar um LP na Fermata, ganhou zero: o empresário faliu. Mas quando voltou, mais tarde, na primeira ponte cultural Portugal-Brasil (1984), o seu nome teve até direito a ficar registado numa canção de Caetano Veloso, Língua, no disco Velô (1989): "Nomes como Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé e Maria da Fé."
Em 1969, estava ainda na Parrerinha, tornou-se a primeira fadista a cantar num festival da canção. Defendeu Vento do norte, de Francisco Nicholson e Braga dos Santos, a convite dos autores. Foi no mesmo ano em que ganhou a Desfolhada, de Simone. Em disco, foi mais um êxito. Dos vários que gravou em muitos discos, ao longo dos anos.
Apesar de ter cantado em numerosos palcos e países, Maria da Fé ainda diz: "A minha vida são as casas de fado." A tal ponto que, desde 1975, é dona de uma, o Sr. Vinho. A ideia não foi dela, mas do marido em parceria com o fadista António Mello Correia.
Mas é em palcos bem maiores que vai festejar agora os 50 anos de carreira: dia 25 de Junho no Coliseu de Lisboa e dia 26 no do Porto. Mais uma vez, não foi ideia dela e nota-se-lhe até um nervosismo à flor da pele só de falar no assunto. Mas no palco tudo mudará, disso também não duvida. No horizonte, mais para o final do ano, pode haver novo disco e o primeiro DVD. Para já, nos coliseus, terá a seu lado vários fadistas que já passaram (ou continuam) pelo Sr. Vinho e que ela muito preza: Ada de Castro ("da minha geração"), Camané, Aldina Duarte e António Zambujo. Os músicos serão José Manuel Neto e António Parreira, na guitarra portuguesa; Carlos Manuel Proença na viola de fado; e Daniel Pinto (Didi) no baixo. De tudo, ela diz. "Não gosto das coisas a curto prazo. Ao longo destes 50 anos nada foi programado, tudo aconteceu: casar, ter filhos, ter a casa de fados. Nem nunca pensei cantar." Mas, lá diz a canção, cantará até que a voz lhe doa. Não a obriguem é a dizer o que vai fazer amanhã. Ela faz e pronto. "Apareci na altura certa, não estou nada arrependida. Mas gostava de ter menos 20 anos. Não só pela minha vida artística, mas para ter mais tempo para as minhas netas."