Director da Cinemateca precisa-se

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O site da Cinemateca Portuguesa ainda diz que o seu director é João Bénard da Costa.
Sinal de que, mesmo na era da Internet, as instituições continuam a ter o seu tempo próprio ou vénia à memória do último e influente director, que morreu a 21 de Maio?
Nos últimos dias, têm circulado rumores entre pessoas ligadas ao cinema - nomeadamente, o de que o novo director da Cinemateca Portuguesa já estava escolhido -, mas o sucessor de João Bénard da Costa permanece uma incógnita. Na semana passada, quando interrogados por jornalistas, tanto o ministro da Cultura quanto a sua secretária de Estado, em ocasiões diferentes, recusaram falar do assunto. José António Pinto Ribeiro disse que qualquer decisão do seu ministério seria anunciada no Parlamento. Ontem, Rui Peças, assessor do ministro, garantiu ao P2 que "não há ninguém escolhido" e que uma decisão deverá ser tomada "o mais breve possível".

Sem confirmar se foi ou não convidado a assumir a direcção da Cinemateca, Pedro Mexia diz que pretende cumprir os três anos do seu mandato enquanto subdirector até ao fim. A sua nomeação pelo próprio Bénard da Costa, em Abril de 2008, causou alguma surpresa. As maiores reservas, em termos de percepção pública, prendiam-se com o facto de Mexia, poeta, cronista e crítico literário do PÚBLICO, não ter créditos firmados na área do cinema, para além de uma breve experiência como crítico de cinema no Diário de Notícias. Mas, pelas suas características - um intelectual com interesses diversificados, católico, para quem o cinema não é a primeira actividade (quando começou a programar ciclos de cinema na Gulbenkian, Bénard da Costa já tinha sido professor e trabalhado na revista O Tempo e o Modo) -, Mexia é alguém em que o ex-director da Cinemateca terá reconhecido uma projecção de si próprio.
José Manuel Costa, colaborador directo de Bénard da Costa, ideólogo do Arquivo Nacional das Imagens em Movimento (ANIM), o centro de conservação e restauro da colecção de filmes da Cinemateca, pareceu, durante anos, o sucessor provável, mas abandonou as funções de subdirector no final de 2005, em divergência com Bénard. Recusa pronunciar-se sobre a questão da sucessão, embora seja apontado por directores de algumas cinematecas europeias como um candidato "preparado e competente". José Maria Prado, director da Filmoteca Española, que tem uma estreita relação com a sua congénere portuguesa há mais de 20 anos, nota que esta "é muito reconhecida pelo trabalho que levaram a cabo João Bénard da Costa e José Manuel Costa, que sempre viajaram juntos a qualquer congresso da FIAF", a federação internacional das cinematecas. Gabrielle Claes, a directora da Cinémathèque Royale de Belgique, em Bruxelas, também considera José Manuel Costa "uma pessoa preparada, a única além de João Bénard da Costa que vemos no exterior e que conhece bem as outras cinematecas; espero que ele encontre um lugar e um papel no pós-João Bénard da Costa".

Qual é a missão
A criação de um concurso público para escolher o sucessor de Bénard da Costa é uma ideia que reúne consenso entre as pessoas ouvidas pelo P2. O realizador João Mário Grilo já tinha defendido essa solução em declarações ao PÚBLICO (22/05/09). Isso permitiria que os candidatos "apresentassem um programa, até porque não é claro o que é que, a nível público, se pensa que é a missão da Cinemateca", diz Pedro Borges, da distribuidora e produtora Midas Filmes. "Se houvesse uma ideia clara, não havia polémica sobre a Cinemateca no Porto, estava definido que ela não é um exibidor cineclubista. Os ministros não fazem ideia para que é que deve servir a Cinemateca. O melhor é fazer um concurso público, avaliarem-se as propostas e o director ser escolhido por um júri. Assim, fica completamente claro o que é que a Cinemateca vai fazer nos próximos cinco anos. É a vantagem."
Para José Manuel Costa, essa é uma solução "possível e adequada". Admite, até, que seja um concurso "transnacional", como é comum noutras cinematecas da Europa e dos Estados Unidos.
"Se não houver cá [candidatos], importem-nos", diz o realizador João Botelho. "Pinamonti não veio dirigir a ópera [Teatro de São Carlos], e não fez um bom trabalho? O curador do Museu Berardo não é um francês?"
José Manuel Costa sublinha que "é preciso perceber que lugar é que é", um aviso a quem possa pensar que "não é preciso nenhuma preparação especial".
Requisitos mínimos: "Tem de ser alguém do cinema", ressalva Pedro Borges. "O que vemos acontecer desde sempre na Cinemateca é: 'Nós amamos isto profundamente, venham cá porque queremos mais gente para amar isto profundamente'", descreve José Neves. "E é necessário que este trabalho, que foi sempre feito com um cuidado e uma sabedoria muito grandes, continue a ser feito. O director de uma cinemateca deve ter esta sabedoria e este sentido cívico da passagem da paixão pelo cinema".
João Botelho pede que seja "uma pessoa culta, por favor". "Tenho medo que venha um gestor, que metam alguém para fazer dinheiro, com a mania que há agora das parcerias e da rentabilidade. Uma cinemateca nunca será uma coisa rentável."

Herança difícil
O mesmo defende Dominique Païni, ex-director da Cinemateca Francesa, entre 1991 e 2000, e amigo de João Bénard da Costa ("telefonávamo-nos duas a três vezes por mês"). "A maior parte dos directores de cinematecas do mundo são administradores, que sabem trabalhar em escritórios, que são funcionários. Bénard da Costa era um dos raros intelectuais." Diz que "é essencial" que a Cinemateca Portuguesa seja "dirigida por um intelectual", uma "personalidade cultural incontestável, e não por um político ou um burocrata".

Bénard da Costa deixa "uma herança difícil", como lembra José Neves. Não porque para trás fique uma instituição fragilizada - a opinião generalizada tira o chapéu à qualidade da sua equipa, "capaz de dar continuidade ao projecto museológico que foi definido", garante José Manuel Costa -, mas porque até agora Cinemateca e João Bénard da Costa se confundiam. Dois em um. "Até devido à forte personalidade do João Bénard da Costa, as pessoas iam ter com ele, passava a ideia de uma grande concentração". Apesar de ter sido o terceiro director da Cinemateca - os anteriores foram Manuel Félix Ribeiro, até 1982, e Luís de Pina, até 1991 -, Bénard da Costa era muitas vezes tido como o seu fundador, porque, como afirmava João Mário Grilo há dias, no PÚBLICO, foi ele que lhe deu identidade. Dominique Païni diz que Bénard "tinha uma visão filosófica do lugar cinemateca". "Para ele, a cinemateca era uma utopia, uma espécie de país ideal. Havia Portugal, os países da Europa, o mundo, e a Cinemateca - um planeta ao lado, que tinha uma pretensão enorme: a de querer trazer coisas melhores ao mundo."
Païni sobre Bénard: "Não se pode substituir um homem como ele".
Para além de todos os atributos que o tornam único - "um homem de escrita e pensamento", com "uma grande habilidade política que lhe vinha do seu estatuto de intelectual" (palavras de Païni) -, João Bénard da Costa era um dos últimos "directores de cinemateca da linha mais histórica", sublinha José Maria Prado. Apesar de ser mais novo do que os pioneiros das cinematecas europeias, entre eles Henri Langlois, da Cinemateca Francesa, e Jacques Ledoux, da Cinemateca belga, e apesar de não ser, como eles, um conservador de filmes, era a esse clube que pertencia. Bénard da Costa chegou a conhecer Henri Langlois, que foi uma influência decisiva para a sua própria visão de uma cinemateca. Païni recorda que isso o ajudou quando foi nomeado director da Cinemateca Francesa em 1991. "Ele conheceu Langlois e, por isso, era muito considerado em França. Afirmou publicamente que eu era o primeiro director digno de Langlois e isso foi muito importante para mim, deu-me uma legitimidade."
"A morte de João Bénard representa o fim de uma era por que outras cinematecas já passaram antes", lembra Pedro Borges.
Tanto Dominique Païni como Gabrielle Claes sabem quão difícil é suceder a directores históricos. Langlois morreu em 1977, o que deu origem a "crises sucessivas" durante "12 a 13 anos" na Cinemateca Francesa, "com imensos conflitos de poder para ocupar o lugar de Langlois", explica Païni. "Perguntaram-me se eu queria dirigir a cinemateca e eu aceitei, mas em termos extremamente brutais. Internamente, havia uma devoção por Langlois e era preciso seguir em frente."

Mostrar o cânone
Quando Jacques Ledoux, o fundador da Cinemateca belga e seu conservador durante 40 anos, morreu repentinamente, em 1988, o período de incerteza durou um ano, lembra Gabrielle Claes, a sua sucessora. Claes trabalhava com ele há 15 anos. A Cinémathèque Royale de Belgique tem o estatuto de fundação de interesse público e funciona como um organismo privado, com um conselho de administração. É subsidiada pelo Estado mas não depende de qualquer ministério. "Um dos administradores foi designado interino, para assegurar o funcionamento. Disseram-me que estavam a pensar em mim, mas que achavam melhor abrir um concurso público. Percebi que era lógico fazer isso: era uma forma de melhor legitimar a sucessão." Gabrielle Claes é a directora da instituição desde 1989. O conselho de administração é formado por realizadores, produtores, "dois ou três jornalistas de cinema", e presidido por um homem da finança, que também é professor universitário no domínio da economia. É o órgão da direcção que define "as orientações estratégicas" da Cinemateca. Claes é a sua "mandatária", como ela própria explica.
"Saímos do período dos pioneiros: Henri Langlois, Freddy Buache, da Cinemateca de Lausanne [Suíça], Raymond Borde [Cinemateca de Toulouse] e Jacques Ledoux. São os primeiros directores de cinemateca, muito identificados com a instituição, muito dedicados, e os sucessores nem sempre são evidentes", resume Claes. "É um momento difícil, em que as pessoas perguntam: 'Será que [o sucessor] vai estar à altura?'. A sucessão é um pouco difícil. Mas também é inevitável."

E isso significa "matar o pai"?
"Não se pode continuar esquecendo a mensagem de João Bénard da Costa. Mas dirigir a Cinemateca imitando o João Bénard da Costa não é possível. O 'pai' está morto, infelizmente. Morreu por si", diz Dominique Païni. "É preciso continuar uma obra. Mas continuar, sem dúvida, com outro estilo. A pessoa designada deve, ela própria, impor o seu estilo. Em 2010, não se pode fazer como João Bénard da Costa fez."
José Manuel Costa lembra que em 1980, ano de abertura da sala de cinema na Rua de Barata Salgueiro, a Cinemateca Portuguesa era "o único sítio onde se podia ver a história do cinema, e esse foi o contexto que determinou toda a doutrina de fundo". Entre as décadas de 1980 e 1990, enquanto a Cinemateca estava ocupada com a sua reformulação estrutural, com a busca de um modelo que lhe permitisse uma autonomia administrativa, e a criação do arquivo para a sua colecção de filmes (ou seja, enquanto a Cinemateca Portuguesa estava a fazer o trabalho que as cinematecas pioneiras já tinham feito em grande parte), ainda não existia um mercado "maciço" de consumo doméstico de filmes, que inclui os chamados clássicos do cinema - território por excelência das cinematecas. O panorama mudou, nota José Manuel Costa, o que obriga a Cinemateca a "repensar alguns dos parâmetros de funcionamento e a relacionar-se com o exterior de uma forma que ajude a pensar as novas necessidades". Dito de outro modo: "Quando somos os únicos, temos de fazer determinadas coisas. Quando não somos, temos de repensar a nossa relação com os outros."
Não são só os DVD, nota o ex-subdirector da Cinemateca. É a proliferação de escolas e cursos de cinema e audiovisual no país, "onde se estão a formar pessoas com lacunas devastadoras ao nível da história do cinema", e o aumento da investigação universitária na área do cinema, praticamente inexistente até há pouco mais de uma década - "há imensa gente com bolsas a fazer mestrados e doutoramentos". A Cinemateca Portuguesa, diz José Manuel Costa, tem uma identidade que está bastante definida: "Há dias, voltei a ver nos jornais alguém a dizer que a Cinemateca não pode tornar-se num museu. É aquela ideia de que o museu é uma coisa morta. É um disparate total, de alguém que não sabe o que é uma cinemateca. As cinematecas são os museus de cinema desde que foram criadas nos anos 30 do século XX. O que há a fazer, como em todos os museus, é adaptá-las ao mundo que as rodeia".
Pedro Borges: "Desde que se criou a ideia de que tudo está acessível e que se pode ver tudo, é ainda mais importante que haja alguém que diga o que é isto e o que é aquilo, que estabeleça um cânone. A Cinemateca serve para mostrar o cânone, para formar gosto".
Dominique Païni está a falar de Lisboa: "Vocês têm a Gulbenkian, têm um óptimo museu de Belas-Artes, mas não têm o equivalente a um Prado ou a um Louvre. Mas, para o cinema, têm o equivalente ao Louvre - é a Cinemateca".

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