O estrangeiro

Nada mais contrário à literatura de ocupação de tempos livres que corrói livrarias e jornais do que a obra de Yukio Mishima (1925-1970). "O Templo Dourado" foi o primeiro livro do escritor japonês publicado em Portugal: em 1972, numa versão, pormenor fascinante, da escritora Maria Ondina Braga. A versão agora reeditada (deve notar-se que se trata sempre de traduções feitas a partir do inglês, língua que o autor impôs, aliás, como veículo e entreposto de passagem obrigatória para a difusão da sua obra no Ocidente), de Filipe Jarro, foi publicada pela primeira vez, pela Assírio & Alvim, em 1985. Isto diz alguma coisa sobre o que temos andado a ler. A título de literatura.

"O Templo Dourado" é um "romance de formação". É, pelo menos, o romance dos anos de formação do protagonista, cujo nome, além do mais, evoca em nós as mais estimulantes memórias cinéfilas: Mizoguchi. Narrada na primeira pessoa, pelo protagonista, a acção decorre, na região de Quioto, entre o momento em que a II Guerra Mundial se estendeu decididamente ao Pacífico, em 1941, e o ano de 1950. Entre o adeus de Mizoguchi à infância e a sua entrada na vida adulta.

Uma profanação sinaliza o início dos anos de aprendizagem do jovem Mizoguchi: o momento em que ele pega no "canivete ferrugento" com que afiava os lápis e vandaliza, impondo-lhe "duas ou três profundas e feias cicatrizes", o "forro negro da bela adaga" de um "jovem herói ido para a guerra". Outra profanação põe-lhe termo: o incêndio do Templo Dourado de Quioto.

Mizoguchi é alguém que se sabe estrangeiro (no sentido camusiano) desde a mais magra e remota infância, desde o tempo em que o pai, "um simples padre [budista] de província", lhe dizia que "nada no mundo igualava em beleza o Templo Dourado". Há, desde sempre, um desencontro radical: ele e o mundo exterior não coincidem. Digamos que todo o trabalho de aprendizagem de Mizoguchi tem como objectivo certificar este desencontro como destino.

Criança débil e desengraçada, pobre, gozada pelos colegas de escola pela sua gaguez, Mizoguchi não é uma vítima que os desvelos sociais e médicos se atrevam a curar: "O meu único orgulho provinha da impossibilidade em fazer-me entender." Nem a Arte ousa consolá-lo. É certo que ele afirma, "sem exagero", que "o primeiro problema" com que se deparou na vida foi "o problema da Beleza". Mas Mizoguchi também diz que tinha de si "uma ideia demasiado alta para ser um artista". A gaguez impõe uma descontinuidade, um intervalo, um atraso em relação ao real, mas protege-o das traições do mundo (a primeira das quais é a Beleza, "aquilo que de mais negro existe no mundo em matéria de ideias negras"), liberta-o da fraternidade da espécie humana, favorece-lhe o destino. A gaguez e também o roubo, a mentira, os sentimentos condenáveis, a aversão desejada. Mizoguchi lembra irresistivelmente o "ladrão" de Genet.

A morte do pai, pondo fim à sua adolescência, não lhe traz lágrimas e Mizoguchi descobre em si "uma espécie de impotência afectiva". Também os seus sentimentos gaguejam: "O desgosto que sinto, quando existe desgosto, [...] é totalmente independente de um acontecimento ou de uma qualquer causa." Odeia e despreza filialmente a mãe, como desprezará o "Prior" do "seminário" que o acolhe depois da morte do pai. Aliás, Mizoguchi aprende que "em matéria de sentimentos nada neste mundo separa os melhores dos piores; que os seus efeitos são idênticos, que não existe qualquer diferença visível entre uma intenção criminosa e um movimento de compaixão". A guerra acaba sem lhe realizar o "sonho secreto" de ver destruído pelas bombas o Templo Dourado: "Nunca a sua beleza fora tão fulgurante, nunca se esquivara tanto a qualquer espécie de significado. [...] Vou achar-me na minha situação anterior, ainda mais desesperada: o Belo de um lado, e eu do outro!" A paz é apenas "o despertar da eternidade", uma "eternidade maléfica". Mizoguchi procura uma iluminação, quer que a sua vida seja um acto.

Como em "O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar" (sobre o qual escrevemos em Novembro), o alto clima de "O Templo Dourado" é dostoievskiano. Mas a escrita de Mishima tem, diferentemente da do grande russo, o veneno de uma clareza lírica e solar fulminante. Mizoguchi e os seus raros amigos na universidade abeiram-se vertiginosamente do grande vazio existencial e as cigarras cantam nas luminosas colinas do Verão. Ele acabará por incendiar o Templo Dourado, mas não por amar apenas, como o seu cínico condiscípulo Kashiwagi, a beleza que não perdura, a beleza inútil "solúvel no ar". A música, por exemplo. Mizoguchi tem 21 anos e descobre que "queria viver". Será preciso imaginá-lo feliz?

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