Cannes quer estar "Up" em cenário de crise

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A habitual festa da revista "Vanity Fair" foi cancelada, o aluguer de iates está em baixa, as redacções dos jornais emagreceram as equipas de cobertura do festival, os compradores e vendedores de filmes até poderão ser em número sensivelmente igual aos de anos anteriores mas virão menos dias para os negócios...

Citando o retrato da imprensa francesa na abertura da 62ª edição do festival de Cannes, a crise económica não faz milagres. Mesmo se as salas estão cheias, mesmo se a indústria hoteleira não se compromete, escondendo-se sob um "optimismo reservado", mesmo se "os arranjos florais" no festival não vão ser prejudicados com a crise. Mas ela existe, é a palavra do dia.

Só que ontem, bastou colocar um par de óculos para ver em 3 D e a palavra "crise" foi suspensa. Fica para o caminho, para fazer o balanço. Em seu lugar apareceu, em relevo, "Up". É a animação digital que abriu o festival de Cannes - a primeira animação na história do festival a ter essa honra - e que permitiu que se fixasse um retrato de família: milhares de jornalistas de pesados óculos na cara (mas sem sinais de máscaras para espantar a gripe).

"Up" é um filme da Disney/Pixar. Melhor seria dizer da Pixar/Disney, porque é a "pequena" empresa que foi comprada pela "mãe" em 2006 que está com os trunfos todos deste jogo. E a recepção a "Up", que tem como personagens um viúvo que se permite um último sonho de aventura, um miúdo que é um desastre de escoteiro, um pássaro raro, um cão que fala e uma casa que voa com balões, todos a caminho da aventura na América do Sul, mostra que o filme não vai estragar o cortejo da dezena de longas-metragens da Pixar que foram sucessos comerciais e artísticos.

Às camisas coloridas de John Lasseter, o homem da Pixar que agora supervisiona artisticamente a animação da Disney/Pixar (ele é o produtor executivo de "Up"), tem sido atribuído o sortilégio. Teremos de concordar, se essas camisas coloridas (aquela com que apareceu ontem na conferência de imprensa era de um "hawaiano" menos garrido do que o habitual) servirem de emblema a um laborioso e amoroso resgate de um património cinematográfico.

Falamos do cinema americano clássico. Não apenas do cinema de animação. Veja-se: um velho que pode ser o nosso avô, mas que parece particularmente habitar os filmes que o nosso avô terá visto, filmes com Spencer Tracy ou Walter Matthau. Ou ainda as aventuras dos "serials", ou  "King Kong", explicitamente citado. Ou - porque a Pixar tem experimentado de forma adulta com a narrativa num género que viveu no gueto infantil - as comédias de Frak Capra, o sentido de elipse de Howard Hawks.

Faz sentido porque a Pixar tem sido descrita como um "estúdio à antiga", com um sentido de família e de formação à maneira da Hollywood dos anos 40. Outra coisa importante para o sucesso de "Up": a capacidade de resistir à sedução de um "brinquedo" tecnológico como o 3D, usando-o como instrumento narrativo e não como efeito especial.

É para isso que ele aqui serve, criando a claustrofobia dos interiores e pendurando-nos na vertigem das alturas a céu aberto. "Como uma janela para o mundo", dizia ontem Lasseter, que concordava que o perigo da tecnologia é ser a demonstração de si mesma e dessa forma atirar para fora do filme o espectador (ou seja: sempre que alguém se espantar, "aahhh!!", com um efeito de relevo de "Up" é sinal de que saiu do filme, dizia ele).

"Up" é uma maravilhosa arca de Noé onde cabe muito do que poderia e deveria ter escapado do dilúvio que se abateu sobre o cinema clássico americano. A palavra, então, ao senhor das camisas coloridas. "Todos os nossos [Pixar] filmes nascem de experiências pessoais dos seus realizadores. O que é importante para mim é o coração da história, a emoção. A Disney sempre disse: ‘Onde há uma gargalhada deve haver também uma lágrima."

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