A ideia de pegar na obra de Amália e dar a volta a alguns originais transportando-os para fora do fado não é, ao contrário do que alguns puristas andam a dizer à boca pequena, obrigatoriamente um disparate.
Também não vale a pena louvar a iniciativa por eventualmente vir a despertar em meia-dúzia de ouvintes curiosidade pela obra de Amália.
Tudo isso são questões paralelas: reescrever as canções originais de Amália é uma boa ideia se a ideia resultar bem. Tão simples quanto isto. Foi Nuno Gonçalves, o moço por trás dos Gift, que se lembrou de brincar com o baú amaliano, e quando se ouve "Amália Hoje" percebe-se o que ele tinha na cabeça: um disco cheio, grandioso, varrido por cordas épicas, metais, e sustentado em alguma electrónica. Um disco que respirasse sofisticação, capaz de num instante soar àquela bossa-nova lounge que infectou o final dos anos 90 e, logo a seguir, a um pastiche não de Amália mas sim dos Arcade Fire (isto acontece, para nossa incredulidade, em "Abandono").
Temos algumas dúvidas quanto ao bom gosto da noção de sofisticação e grandiosidade da música de Nuno Gonçalves, e essas dúvidas mantêmse depois de várias escutas de "Amália Hoje", disco que tanto se socorre de canções óbvias (como "Gaivota" ou "Foi Deus") como vai buscar flirts extra-fado como "L'important c'est la rose". O grosso do disco soa um pouco a festival da canção dos anos 70, o que não é nada mau.
A maior parte das vezes dispensavam-se as partes electrónicas, como o pequeno interlúdio electrónico em "Nome de rua", canção cujo problema maior são as vozes. Aliás, o problema maior de todo o disco são as vozes, ponto final. Paulo Praça e Fernando Ribeiro são erros de casting, porque os seus registos não se adaptam a estas canções grandiloquentes. Quanto a Sónia Tavares, o caso é mais ambíguo: ela sabe cantar, tem pulmão para subir quando é necessário, mas por vezes parece não ter a mão do que está a fazer.
Quando no refrão de "Gaivota" Tavares abre as vogais todas no verso "Que perfeito coração", o exagero vocal é tamanho e particularmente notório aquando do ataque a "coração". Todo esse empenho está mais próximo do emocionalismo imediato de uma Ágata que da contenção, plena de luta interna, de Amália. Se quiserem vão ao Youtube verificar: o "coração" de Amália é todo ambiguidade e vibrato, coisa oscilante, por oposição ao "coração" que é só pulmão de Tavares.
Dar as notas de uma canção não é o mesmo que transmitir o sentimento inscrito nessa canção. É como se para Tavares ser intensa implicasse inchar as sílabas, enchê-las de ar e fazer muito espalhafato, em vez de cantar o que lá está e a canção pede. O problema de "Amália Hoje" é que se encontram pormenores de mau gosto como este em todas as canções: quando não há uma vocalização exagerada, há um qualquer coro de mau gosto (embora o de "Gaivota" chegue a ter graça de tão kitsch que é), partes electrónicas descabidas, "aaaaas" deslocados, etc.
Em alguns casos, como em "Formiga bossa nova", parecemos estar a assistir a um daqueles medleys que apareciam nas tardes de domingo, nos programas de Júlio Isidro. Há coisas boas? Sim: alguns arranjos para orquestra são de facto grandiosos, algumas das opções fazem sorrir pela dessacralização, mas isso não torna as canções boas e não apaga os constantes momentos de puro mau gosto que assolam o disco - é como se num acesso de novo riquismo Gonçalves quisesse encher o disco com todas as ideias opulentas que teve, mas nem sempre a opulência é a solução.
Se graças a "Amália Hoje" a miudagem for escutar a diva, melhor, mas isso não altera o facto de este ser um disco falhado por excesso de mau gosto.
Uma última nota para as notas do libreto de Nuno Gonçalves: quando se usa o verbo "Haver" no sentido de "existir", aquele é sempre conjugado na terceira pessoa do singular. Assim, não se escreve "Não haviam notas, não haviam letras (...)" mas sim "Não havia notas, não havia letras". É um pouco estranho que num objecto cuidado ninguém se tenha lembrado de reparar no texto do libreto.