Do outro lado da linha telefónica, em Nova Iorque, é hora de estar à mesa do pequeno-almoço, por isso o sussurro filosofante tem o som de um mascar niilista. Não é o Kurtz de Marlon Brando em "Apocalipse Now". É James Toback a falar, a descrever as etapas de uma odisseia pela masculinidade. "Identidade, sexo, crime, morte e boxe. E raça. É esta uma das razões por que somos tão próximos, por termos as mesmas obsessões."
Eles, os que são próximos, são Toback, realizador e argumentista, e Mike Tyson, ex-pugilista e em tempos um animal. Conhecem-se há duas décadas, mas só recentemente se revelou oportuno concretizarem aquilo de que vinham falando: um filme. "Foi o tempo certo para ambos. Mike tinha estado a fazer desintoxicação, teve tempo para meditar, estava mais concentrado do que o normal. Três semanas antes de começarmos a filmar, voltei a propor-lhe o filme e ele disse logo que sim. No meu caso, senti que tinha de trabalhar: a minha mãe morrera, o melhor era mesmo filmar."
"Tyson", que é exibido hoje às 21h45 no IndieLisboa (cinema S. Jorge, secção Observatório), é, então, Tyson por Tyson por Toback. Mas o realizador dá novo recorte ao género documentário biográfico colocando no meio do ringue uma "voz humana": à beira de se extinguir, voz de medo, traída pela respiração. Difícil imaginar o campeão Tyson a não conseguir respirar. Difícil imaginar esta voz neste corpo de tubarão. Não se imaginava e não se esquece um medo assim. Isso é o coração do filme, a sua montagem invisível, e fica connosco.
"Senti que havia algo de hipnótico naquela voz, como se ela fosse o fluxo visível de uma consciência. Senti que o filme seria mais revelador se fosse assim: só a estranha musicalidade daquela voz torná-lo-ia palpável e não deveria ser diluído por mais nada", muito menos pela faceta ilustrativa das imagens de arquivo.
Toback e Tyson conhecem-se há décadas. Mas ainda assim o realizador surpreendeu-se: "Surpreendeu-me ele falar do medo, de que o medo foi para ele uma realidade arrebatadora. Também não sabia que em criança ele tinha sido um miúdo pequeno e gordo com problemas de respiração: em alguém que é um lutador profissional isso é uma anomalia. Eu era assim, também, em miúdo. A asma dá uma sensação de pânico. Compreendo isso. Depois do que ele contou, percebi que há em nós, por causa disso, uma histeria selvagem."
Matar ou ser morto
"Tha chaos of the brain" - é assim Mike a falar de Mike. Explica por que é que entrava no ringue como um tubarão assassino: os combates não podiam demorar muito tempo ou ele seria derrotado pelos pulmões. É este, então, sumariamente, o segredo daqueles "KO" sumários.
Não tinha outra hipótese, também, em Brooklyn, na sua "very horrific" infância: "matar ou ser morto", para fugir da humilhação pública, porque era gordo. "I was affraid, so affraid..."
Criava pombos nos telhados - como o Brando de "Há Lodo no Cais", que também praticava boxe.
No Verão de 1976, tinha Mike 10 anos, entrou para a vida criminosa. Era a "grande emoção" de ser mais esperto do que os outros, dos que olhavam para ele e percebiam que ali estava um profissional dos esquemas de rua.
Aos 12 entrou para um centro correccional juvenil onde começou a praticar boxe. Deu-se o encontro com Cus D'Amato, treinador, que passou a ser a figura paterna da sua existência. Foi o homem que reconstruiu a sua confiança, que o iniciou na filosofia do boxe ("É tudo espiritual, não há nada de físico") e que lhe abriu as portas da sua mansão de 14 quartos - quando ali entrou pela primeira vez, Tyson ainda pensou que podia bem roubar aqueles brancos...
Mudou de vida, pela disciplina, pela fidelidade - canina - a Cus D'Amato, que também encontrou nele uma razão para viver. "Nobody fisically would fuck with me again because I knew I would fuckin' kill them if they fuck with me", recorda hoje Tyson - asseguramos que a melancolia é muita e não é aqui traduzível.
Deixou de roubar coisas, passou a roubar identidades. "Não tinha uma imagem de mim. Sempre olhei para as pessoas que admirava e ia em busca desse qualidade." Admirava Errol Flynn, que foi o modelo para satisfazer a sua curiosidade sobre as mulheres desde que ouvia incessantemente, em casa da mãe promíscua, "suck my dick" e "suck my pussy". Casou-se com a actriz Robin Givens e os "talk shows" televisivos serviram de câmara de eco da violência conjugal e do divórcio - "Éramos apenas miúdos", diz Tyson, com uma tristeza que não deixa dúvidas de que o que existiu entre eles foi mais complexo. E, depois, uma acusação de violação por uma concorrente a Miss América, e a prisão, em 1992.
O mundo tornou-se críptico, como numa tragédia, já não estava vivo Cus D'Amato para o salvar. "Perdi a minha humanidade." Quando saiu da prisão, em 1995, fez a tatuagem maori, preparando-se, como um guerreiro, para derrotar o mundo e os que estavam contra ele - como aquele jornalista, numa conferência de imprensa, a quem, com ferocidade inaudita, fez uma declaração de morte que podia ser também uma declaração de amor ou vice-versa: "I'll fuck you till you love me."
Nessa espiral de atordoamento perante o mundo, mordeu, em 1997, a orelha do adversário, Evander Holyfield. E um dia desistiu. "Já não tenho a ferocidade. Já não sou um animal." Era espécie em extinção. É isso também que, para além da asma, do medo, o faz ser parte do mundo de James Toback, o realizador de "Fingers" (filme de 1978 que em 2005 teve um "remake" francês, "De Tanto Bater o Meu Coração Parou"). Ou como o cinema também é um combate de boxe. Ou como isto tudo tem a ver com a América.
Da voz de Tyson ameaçada pelos pulmões voltamos à versão de Kurtz/Brando de Toback: "Sim, é verdade, há ali, em Tyson, qualquer coisa que tem a ver com o que fica depois de um terramoto, depois da devastação. Como o rumor longínquo de um trovão. O que fazer no meio disso? Há um certo mundo que acabou com Mike Tyson. Como no cinema: os dias gloriosos do cinema como experiência de grupo, como espectáculo de sala está a ser posta em causa por outras formas de consumo. É inevitável, é um ciclo. Todas as formas de arte tendem a acabar. Como as pessoas, atingem um pico, deterioram-se, morrem. Não há razão para pensar que isso não acontece na arte. Ou aos países. Veja-se os Estados Unidos: há 20 anos havia um sentido de pico, de alta. Agora ninguém consegue dizer que o futuro pertence à América."
O que fazer, James Toback, no meio disso? "Sou um obsessivo. É impossível esquecer que a morte está na esquina. Tenho duas hipóteses: ou sou impulsivo, adopto comportamento radical, torno-me hedonista, sem limites, ou, a outra hipótese, e já que a vida pode ser interrompida a qualquer momento, tenho de agir de forma a deixar algo de substancial. Para sentir que fiz o melhor que pude. Isso só fazendo filmes. Mas tendo consciência que de cada vez o meu futuro não é mais do que dois filmes." À esquina, James, pode estar uma epifania. A de Tyson também é a dele e é movida pelas palavras de Oscar Wilde. Está no filme, a voz é a de um ex-pugilista: "Yet each man kills the thing he loves/ By each let this be heard, /Some do it with a bitter look, /Some with a flattering word, /The coward does it with a kiss, /The brave man with a sword!", é "A Balada do Cárcere de Reading".
"Havia um plano na praia, o pôr do sol, uma coisa muito poética, comecei a pensar em alguns dos temas do filme, a morte, ao amor, a prisão... o poema do Wilde é um dos meus favoritos. Perguntei a Mike Tyson se ele conhecia. 'Quem escreveu?', perguntou-me. 'Oscar Wilde', respondi. E ele: 'Sabes quem era o amante dele?'. 'Sim', retorqui, 'Lorde Alfred Douglas'. 'Ah', disse ele, 'poucas pessoas saberiam isso. E sabes como se chamava o pai dele?'. 'Sim', respondi, 'era o Marquês de Queensberry'. 'Ah', concluiu Tyson, 'poucas pessoas saberiam isso. E sabes o que fez o pai dele?'".
"Tyson", de James Toback
Hoje, 24, 21h45, S. Jorge