Quando se deixa morrer o filho no banco de trás

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Miles e Carol Harrison confortam-se um ao outro à porta do quarto do filho Chase Rebecca Drobis/"The Washington Post"

O réu era um homem enorme, bem para cima dos 140 quilos, mas com a gravidade da sua tristeza e da sua vergonha parecia ainda maior. Inclinava-se para a frente numa robusta cadeira de madeira onde mal se conseguia encaixar, enquanto chorava mansamente, encharcando lenço atrás de lenço, e uma perna balouçava nervosamente por baixo da mesa. Nas primeiras filas de bancos reservados para os espectadores estava sentada a sua mulher, parecendo devastada, rodando a aliança de casamento distraidamente. A sala parecia um sepulcro. As testemunhas falavam baixo sobre acontecimentos tão dolorosos que a maior parte delas perdeu a compostura. Uma enfermeira do serviço de urgências de um hospital chorou ao descrever a forma como o réu se tinha comportado depois de a polícia o ter levado. Ele estava virtualmente catatónico, recorda a enfermeira, com os olhos fechados com força, balançando-se para a frente e para trás, fechado em algum tormento pessoal impenetrável. Durante muito tempo não disse nada, só o fez quando a enfermeira se sentou ao seu lado e segurou na sua mão. Foi apenas aí que o paciente começou a abrir-se, e o que ele disse foi que não queria qualquer medicamento, que não merecia alívio para a dor, que queria senti-la toda, e depois morrer.

Na sala do tribunal, o Ministério Público da Virgínia, Estados Unidos, avançou com a acusação de homicídio involuntário. Não havia grande questão quanto aos factos. Miles Harrison, de 49 anos, era uma pessoa afável, um homem de negócios empreendedor e um pai consciencioso e carinhoso até ao dia em que, no Verão anterior - envolvido em problemas no trabalho, fazendo chamada após chamada no seu telemóvel -, se esqueceu de deixar o filho, Chase, na creche. A criança sufocou lentamente até à morte, presa com o cinto do banco do carro durante nove horas, num parque de estacionamento de um bloco de escritórios em Herndon, no imenso calor do mês de Julho.

Foi um erro inexplicável e imperdoável, mas terá sido crime? Era essa a questão que o júri tinha que resolver.

A determinado ponto, durante um intervalo dos trabalhos, Harrison levantou-se hesitante, virou-se para abandonar a sala do tribunal e viu, como se fosse a primeira vez, que havia pessoas a testemunhar a sua desgraça. Os olhos daquele homem enorme viraram-se para o chão. Tremeu um pouco até que alguém o equilibrou, e então balbuciou num falsete: "Meu pobre filhinho!".

Um grupo de alunos do liceu encheu a sala, numa visita de estudo ao tribunal. O professor que os acompanhava não estava visivelmente à espera disto: em poucos minutos, os miúdos de olhos arregalados foram mandados para fora da sala.

O julgamento durou três dias. A assistir a tudo, lado a lado no fundo da sala, estiveram duas mulheres que tinham viajado durante horas para chegar até ali. Ao contrário de quase todas as pessoas sentadas nos bancos, não eram familiares, colegas de trabalho ou amigas íntimas do acusado.

"... a parte inferior do corpo tinha cor vermelha a vermelha-púrpura..."

À medida que as provas mais impressionantes eram mostradas pelo médico especialista em patologia forense, as duas mulheres no fundo da sala juntavam-se mais, encostando-se uma à outra.

"... uma descoloração verde no abdómen... autólise dos órgãos... aquilo a que chamamos definhamento da pele... a temperatura do corpo atinge os 42,2 graus centígrados, após o que se dá a morte."

Mary - a mais velha e mais baixa - tremia. Lyn - a mais nova, mais alta, com longos cabelos louros - puxou-a, com um braço à volta dos ombros.

Quando o julgamento terminou, Lyn Balfour e Mary Parks saíram discretamente. Não queriam ter estado ali, mas sentiam que tinham obrigação de o fazer, quer para com o réu quer, de uma forma muito mais obscura, para com elas próprias.

Era pouco habitual, para não dizer mais: três pessoas no mesmo sítio partilhando a mesma história de partir o coração. Os três tinham acidentalmente morto os seus filhos da mesma maneira, uma maneira incompreensível e moderna.

A designação oficial é "morte por hipertermia". Quando acontece a crianças pequenas, os factos são sempre os mesmos: um pai amoroso e atento um dia fica muito ocupado, ou distraído, ou aborrecido, ou confuso com alguma mudança na sua rotina diária, e simplesmente... esquece que está uma criança no carro. Isto acontece 15 a 25 vezes por ano algures nos Estados Unidos, ao longo da Primavera, Verão e início do Outono. A estação destes acidentes está quase a começar.

A pior coisa do mundo
Até há duas décadas, era algo relativamente raro. Mas no início da década de 90 os especialistas de segurança automóvel decidiram que os airbags dianteiros do lado do passageiro podiam ser mortais para as crianças e, por isso, recomendaram que as cadeirinhas fossem passadas para os bancos traseiros; depois, para ainda maior segurança dos mais novos, passaram a recomendar que as cadeirinhas de bebé ficassem voltadas para trás. Se poucos previram a consequência trágica da menor visibilidade da criança... bem, quem os pode culpar? Que tipo de pessoa esquece um bebé no carro?

Parece que os ricos esquecem. E os pobres, e os de classe média. Pais de todas as idades e raças. As mães tendem a fazê-lo tanto quanto os pais. Acontece aos cronicamente distraídos e aos fanaticamente organizados, aos com estudos universitários e aos que mal sabem ler. Nos últimos dez anos, aconteceu a um dentista. A um trabalhador dos correios. A uma assistente social. A um agente da polícia. A um contabilista. A um soldado. A um assistente de advocacia. A um electricista. A um clérigo protestante. A um estudante para rabino. A uma enfermeira. A um trabalhador da construção civil. A um vice-director de escola. Aconteceu a um conselheiro de saúde mental, a um professor universitário e a um cozinheiro de "pizzas". Aconteceu a um pediatra. Aconteceu a um cientista de foguetões.

No ano passado, aconteceu três vezes no mesmo dia, o pior de todos os dias naquele que foi até agora o pior ano de um fenómeno que não mostra sinais de vir a diminuir.

Os factos diferem um pouco em cada caso, mas existe sempre aquele terrível momento em que o pai percebe o que fez, muitas vezes através de um telefonema de um cônjuge ou de uma educadora. Isto é seguido de uma frenética corrida até ao carro. O que o espera lá é a pior coisa do mundo.

Cada situação tem a sua própria assinatura macabra. Um pai tinha estacionado o carro ao pé de uma feira de diversões; quando descobriu o corpo do filho, um órgão tocava alegremente ao seu lado. Outro homem, querendo acabar rapidamente com tudo, tentou tirar uma arma de um agente da polícia que se tinha deslocado até ao local. Várias pessoas - incluindo Mary Parks, de Blacksburg - guiaram o carro do seu local de trabalho até à creche para ir buscar a criança que pensavam que tinham lá deixado, não notando o cadáver que estava no banco de trás.

Depois, temos o executivo de Chattanooga, estado do Tennessee, que tem que viver com isto: o alarme detector de movimentos do seu carro disparou três vezes lá fora, no sol abrasador. Mas quando ele olhava não conseguia ver ninguém a mexer no carro. Por isso, com o controlo remoto, desactivou o alarme e voltou calmamente para o trabalho.

Distracção ou crime?
Não deve haver falha humana que mais profundamente desafie as convicções da nossa sociedade acerca de crime, castigo, justiça e piedade. De acordo com as estatísticas compiladas por um grupo norte-americano que se debruça sobre os aspectos legais da segurança infantil, em cerca de 40 por cento dos casos as autoridades examinam as provas, determinam que a morte da criança foi um terrível acidente - um erro de memória que acarreta uma sentença perpétua de culpa muito mais pesada do que aquela que qualquer juiz ou júri conseguiria pronunciar - e não apresenta queixa ou acusação. Nos restantes 60 por cento dos casos, com factos no essencial muito semelhantes e aplicando-lhes praticamente as mesmas leis, as autoridades decidem que a negligência foi tão grande e que o dano foi tão grave e doloroso que deve ser considerado um crime.

Na realidade, apenas cinco dias antes de Miles Harrison ter esquecido o seu filho no parque de estacionamento do bloco de escritórios em Herndon, onde trabalhava, um acontecimento similar havia ocorrido algumas centenas de quilómetros para sudeste. Após um longo turno no trabalho, Andrew Culpepper, um electricista do departamento de higiene e saneamento em Portsmouth, Virgínia, foi buscar o filho à residência dos pais, conduziu até casa, entrou e adormeceu, esquecendo que tinha o menino no carro, deixando-o a assar até à morte.

Harrison foi acusado de crime. Culpepper não foi. Nos dois casos, a decisão ficou nas mãos de uma pessoa.

No que toca a Harrison, foi Ray Morrogh, o promotor público da área de Fairfax. Numa entrevista alguns dias após ter deduzido a acusação de homicídio involuntário, Morrogh explicou as suas razões.

"Há muito a dizer no que toca à reafirmação das obrigações de as pessoas protegerem os seus filhos", diz Morrogh. "Quando temos crianças, temos responsabilidades. Pugno fortemente pela defesa da segurança das crianças."

Morrogh tem dois filhos, de 12 e 14 anos. Pergunta-se-lhe se consegue imaginar-se na mesma situação. A questão parece tê-lo apanhado de surpresa. Mudou de assunto e, dez minutos depois, já tinha decidido a resposta: "Tenho que dizer que não, que nunca me poderia acontecer. Sou um pai vigilante".

Em Portsmouth, a decisão de não acusar Culpepper, de 40 anos, foi tomada pelo promotor público Earle Mobley. Por mais trágica que a morte da criança tenha sido, diz Mobley, a investigação da polícia mostrou que não era crime porque não havia intenção; Culpepper não estava desumanamente a brincar com a vida do seu filho - apenas se esquecera de que a criança estava lá.

"O mais fácil de fazer num caso destes é atirar tudo para cima de um júri, mas isso não é a coisa mais acertada que podemos fazer", diz Mobley. A responsabilidade de um acusador, continua o promotor, é conseguir que se faça justiça, não é obter uma compensação ou vingança.

"Eu não creio apenas que tomei a decisão certa", diz. "Tenho a certeza de que tomei a decisão certa."

Pode não haver um modo correcto ou errado de enfrentar casos como estes. Em cada um deles o funcionário público está a tentar fazer o seu melhor face a um dilema salomónico. Mas os funcionários públicos também são seres humanos, e têm inevitavelmente que colocar no seu juízo todo o peso desse complicado facto.

"Sabe, é curioso estarmos a conversar exactamente hoje", afirma Mobley. Ele tem cinco filhos. Hoje, conta, é o aniversário da sexta. "Ela morreu com leucemia em 1993. Tinha quase três anos." Mobley faz uma pausa. Não quer dar uma impressão errada.

Afirma que tomou a sua decisão baseado na lei. "Mas também tenho uma ideia do que se sente, o que isso nos faz, quando perdemos um filho."

Assim, depois da morte do seu filho, Andrew Culpepper foi mandado para casa para tentar viver o resto da vida com a lembrança do que fez. Após a morte do filho, Miles Harrison foi acusado de crime. A fotografia da sua cara apareceu nos jornais e na televisão, com a expressão nua, assombrada e perseguida que estes pais exibem, encurralados. Contratou um advogado caro. Ao longo de meses, os dois lados apresentaram os seus argumentos. As testemunhas foram convocadas e interrogadas. As tentativas de um acordo falharam. O julgamento começou.

O tribunal ouviu como Harrison e a sua mulher eram um casal nos seus 40 e muitos anos e sem filhos que desesperadamente tentavam ser pais, e como tinham feito três visitas a Moscovo, e de cada vez tinham empreendido uma estafante viagem de dez horas pela província russa com o objectivo de encontrar e adoptar o seu filho de 18 meses, que estava numa cama de um orfanato de onde poucas vezes o deixavam sair. A vizinha da casa ao lado dos Harrison contou como vira o pai a brincar alegremente na relva com o filho. A irmã de Harrison testemunhou sobre como ela trabalhara durante semanas com o irmão e a cunhada na procura da creche ideal para o menino, que necessitava de cuidados especiais para recuperar dos efeitos do seu doloroso início de vida.

Do banco das testemunhas, a mãe de Harrison declarou de modo desafiador que Miles tinha sido um bom filho e um pai perfeito e carinhoso. Perturbada mas composta, Carol, a mulher de Harrison, descreveu o telefonema que o marido lhe fizera logo após ter descoberto o que tinha feito, o telefonema que ela recebera enquanto estava enfiada num autocarro de regresso do trabalho para casa. O telefonema foi, disse ela, apenas gritos ininteligíveis.

No final, o juiz Terence Ney, do Tribunal do Condado de Fairfax, declarou Miles inocente. Não houvera crime, declarou, citando razões legais idênticas às que Earle Mobley evocara para não acusar Andrew Culpepper.

Ao ouvir o veredicto, Harrison engasgou-se, chorou, tentou manter-se de pé, mas este homem já não tinha nada lá dentro. As pernas cederam e caiu de joelhos.

Faltam palavras
Então, se não é homicídio involuntário, o que é? Acidente? "Não, esse é um termo incorrecto." Quem o diz é Mark Warschauer, um reputado perito em tecnologia e aprendizagem da linguagem, professor de Ciências da Educação na Universidade da Califórnia, em Irvine. "O termo 'acidente' faz parecer que isto não podia ter sido evitado", diz Warschauer, "mas 'incidente' faz parecer trivial. E não é trivial."

Warschauer é um académico respeitado internacionalmente, especializado no uso de computadores portáteis para desenvolver a literacia nas crianças. No Verão de 2003, voltou para o seu gabinete depois do almoço e deparou com uma multidão à volta de um carro no parque de estacionamento. A polícia tinha estilhaçado o vidro de uma janela com um pé-de-cabra. Só quando chegou mais perto é que Warschauer percebeu que era o seu carro. Foi a primeira pista de que ele se esquecera de deixar Mikey, o seu filho de dez meses, na creche nessa manhã. Mikey estava morto.

Warschauer não foi acusado de crime, mas durante meses pensou em suicidar-se. Gradualmente, conta, esse desejo foi diminuindo; a dor e a culpa não.

"Falta-nos uma palavra para o que isto é", afirma Warschauer. Para além disso, continua, precisamos de perceber por que é que isso acontece a quem acontece.

Série de coincidências
Estamos em meados de Outubro. Lyn Balfour está a falar ao telemóvel, a encomendar uma correia de substituição para a cadeirinha do seu bebé, e ao mesmo tempo tenta arranjar uma babysitter à última hora, dado que tem que ir à clínica de fertilidade, sem demora, porque acabou de receber os resultados das análises laboratoriais, e está no período de ovulação, e o seu marido está no Iraque, e ela quer ser artificialmente inseminada com o esperma dele, e tem que ser agora mesmo, mas, bolas, a babysitter está ocupada, por isso pega na criança e nas chaves e no saco das fraldas e sai porta fora e mete-se no carro. Mas agora o bebé está a resmungar, e por isso ela dá-lhe uma garrafa de sumo, com um olho nele e outro numa aparentemente interminável série de curvas fechadas.

"Na realidade", diz a rir, "estou a ficar cada vez melhor a não fazer demasiadas coisas de uma só vez. Estou a simplificar muito a minha vida".

Raelyn Balfour é aquilo que usualmente designamos como uma personalidade de tipo A. Ela própria é a primeira a reconhecer que o seu temperamento contribuiu para a morte do seu filho, Bryce, há dois anos. Aconteceu a 30 de Março de 2007, o dia em que ela acidentalmente deixou o bebé de nove meses no parque de estacionamento na sede da investigação militar de Charlottesville, onde trabalhava como administradora de transportes. A temperatura máxima desse dia não passou dos 16 graus centígrados, mas a biometria e a termodinâmica de bebés e de automóveis fazem uma combinação impiedosa: as crianças pequenas possuem termóstatos fracos, e o calor aumenta rapidamente num veículo fechado debaixo do sol. Nesse dia, a temperatura no carro de Lyn terá chegado aos 42,4 graus centígrados.

Há uma expressão que parece ter saído da banda desenhada para aquilo que aconteceu a Lyn Balfour a 30 de Março de 2007. Em 1990, o psicólogo britânico James Reason cunhou o termo "modelo de queijo suíço" para explicar, através de uma analogia, por que razão falhas catastróficas podem ocorrer em organizações, apesar dos seus múltiplos níveis de defesa. Reason compara estes níveis a fatias de queijo suíço, empilhadas em cinco ou seis camadas. Os buracos representam pequenas fraquezas, potencialmente insignificantes. As coisas apenas raramente irão entrar em colapso, diz o cientista, mas quando isso acontece é por coincidência - quando todos os buracos estão de tal forma alinhados que existe uma falha ao longo de todo o sistema.

No dia em que Lyn se esqueceu de Bryce no carro, tinha passado a maior parte da noite acordada, primeiro tomando conta do filho de uma amiga que tinha levado de emergência o seu cão a uma clínica veterinária, depois cuidando de Bryce, que estava rabugento devido a uma constipação. Como o bebé estava também cansado, e ao contrário do que era normal, acabou por adormecer no carro, por isso não fez barulho. Dado que Lyn tinha planeado levar a habitual cadeirinha de bebé até ao quartel dos bombeiros para que eles a instalassem devidamente, Bryce ficou nesse dia posicionado numa cadeirinha diferente, não atrás do banco do passageiro, mas sim atrás do condutor, e como tal não era visível no espelho retrovisor. Como o outro carro da família estava emprestado a um familiar, nesse dia Lyn levou o marido de automóvel até ao emprego dele, o que significa que o saco das fraldas estava na parte de trás, e não no banco do passageiro da frente, como era habitual, e onde ela o podia ver. Devido a uma conversa telefónica com um jovem familiar que estava metido em sarilhos, e outra conversa com o seu chefe acerca de um problema no trabalho, Lyn passou a maior parte do percurso ao telemóvel, stressada, resolvendo os problemas de outras pessoas. A babysitter tinha um telefone novo, e na lista de contactos ainda não tinha o número do escritório de Lyn, apenas o seu telemóvel, o que significa que quando a babysitter telefonou, a perguntar por que razão Lyn não tinha deixado Bryce na casa dela nessa manhã, o telemóvel de Lyn tocou mas, escondido na sua bolsa, ela não o ouviu.

Os buracos, todos eles, alinhados.

Uma mulher em luta
Não existe um perfil de carácter coerente do pai que faz isto ao seu filho. Nos 13 que foram entrevistados para este artigo incluem-se os introvertidos e os extrovertidos, os meigos e os bruscos, os estóicos e os terrivelmente frágeis. Em nenhuma destas definições se encaixa com exactidão Lyn Balfour, uma reservista do exército dos EUA que serviu em zonas de combate e que parece continuar - pelo menos no que toca ao tema da morte do seu filho - em luta.

"Não sinto necessidade de me perdoar", diz de modo franco, "porque o que fiz não foi intencional".

Lyn é uma mulher alta e decidida, que se movimenta com passadas ritmadas. Tem um queixo pouco firme mas uma linguagem muito forte, que usa sem grandes preocupações em evitar palavras mais problemáticas. É divertida e descarada e diz o que tem a dizer: o tipo de pessoa de que se gosta ou que se detesta, logo à primeira vista.

Foi Lyn quem teve a ideia de ir até ao julgamento de Miles Harrison, e foi ela que se dirigiu a Harrison no hall de entrada do tribunal durante uma pausa nas sessões, empurrando-o pelo meio da multidão, colocando os braços à volta do acusado, puxando-o para si. Durante quase um minuto, murmurou-lhe ao ouvido. Os olhos dele arregalaram-se, e depois chorou no ombro dela, como um bebé. Lyn dissera-lhe quem ela era e que sabia que ele havia sido um pai bom e carinhoso, e que não se devia sentir envergonhado.

Lyn cresceu no estado do Michigan, num meio de classe média-baixa. Havia um homem que lhe disseram ser o seu pai e um amigo íntimo da família que, soube ela mais tarde, era o seu verdadeiro pai. Os seus dois pares de avós acabaram por se divorciar, e depois trocaram de parceiros entre si. Houve alcoolismo, divórcio, uma luta pela custódia da criança. Quando Lyn fez 18 anos estava pronta para a disciplina do Exército.

Fez serviço na Bósnia e duas vezes no Iraque, onde se especializou em análise de informações secretas e gestão de construções, e onde descobriu a capacidade de fazer uma dúzia de coisas ao mesmo tempo. Recebeu a medalha Estrela de Bronze por conseguir gerir 47 milhões de dólares em projectos sem desperdiçar um cêntimo. Casou, teve um filho, divorciou-se, conheceu Jarrett Balfour e em menos de um mês decidiu que este homem bonito e mais novo do que ela iria ser seu marido. Dezoito meses mais tarde, já o era. Bryce foi o primeiro filho que tiveram juntos. Braiden, concebido com o esperma de Jarrett quando ele estava no Iraque, é o segundo. Actualmente, e da mesma forma, estão a tentar fazer um terceiro.

Lyn esteve na clínica de fertilidade para a sua consulta, e agora está a reconstituir o caminho para a escola da polícia judiciária militar, para mostrar onde e como se deu a morte do filho. Deixara Jarrett no trabalho dele, ao fundo da rua, à direita, o que não era habitual, e que, teoriza ela, colocou uma marca inconsciente no seu cérebro: entrega terminada. Agora está a apontar para a casa da babysitter, pela qual passou sem notar enquanto falava com o seu chefe acerca de uma confusão de horários, e com o seu sobrinho sobre como ajudá-lo a pagar as dívidas de jogo. E aqui está o parque de estacionamento da escola da polícia judiciária militar, no campus da Universidade da Virgínia. Está a colocar o carro no mesmo lugar em que estacionou naquele dia, o lugar onde Bryce morreu.

"Foi assim, só que estes dois lugares ao nosso lado estavam vazios", faz notar suavemente enquanto sai do carro, tira as chaves e se inclina para apanhar o saco das fraldas.

Há em Lyn Balfour uma quase banalidade que pode parecer desconcertante, sobretudo se temos uma ideia preconcebida sobre a forma como uma pessoa na sua situação deve encarar o mundo.

Podíamos pensar, por exemplo, que ela trocaria de carro. Mas este Honda Pilot negro com um volante com uma cobertura cor-de-rosa é o mesmo carro em que Bryce morreu, apenas alguns centímetros ao lado do sítio onde Lyn está agora inclinada sobre Braiden para o desprender.

"Não fazia sentido a nível financeiro comprar um carro novo", diz ela.

Os seus olhos estão impassíveis. A sua atitude é clara: Tens algum problema com isso?

Caso raro
Nem todos os casos de hipertermia de crianças em automóveis são como aqueles de que trata este artigo: simples, ainda que desconcertantes, lapsos de memória de um aparentemente bom pai ou de uma boa mãe. Noutros tipos de casos, existe um historial de negligência anterior ou provas de maus tratos. Por vezes, o pai deixa conscientemente a criança no carro, apesar do perigo óbvio. Num caso particularmente flagrante, uma mãe usava o carro trancado como uma substituição barata da creche. Quando as mortes por hipertermia são consideradas crimes, estas são algumas das situações que tendem a resultar em sentenças de prisão.

Casos como o de Lyn Balfour, quando levados a tribunal, terminam em algum tipo de acordo: um pedido de pena reduzida, por vezes com liberdade condicional e uma pena suspensa, ocasionalmente com serviço comunitário. Ir a julgamento é relativamente raro.

O que aconteceu a Balfour foi ainda mais raro. Ela foi acusada não de homicídio involuntário, mas de homicídio de segundo grau, que implica uma possível pena de prisão até 40 anos. E como condição de permanecer em liberdade sob caução, o tribunal proibiu-a de ficar sozinha com menores, incluindo o seu próprio filho adolescente.

Por isso, Balfour contratou John Zwerling, um criminalista de primeira categoria, de Alexandria. Isso levou a que Jarrett Balfour, empregado de um fornecedor civil das forças armadas, não tivesse outra escolha senão oferecer-se para uma missão no Iraque. O dinheiro extra ia ser necessário para despesas legais. Lyn Balfour teria de enfrentar tudo sozinha.

Foi então que ela começou a passar da dor e da culpa e da insegurança pessoal que a paralisava para uma cólera muito específica e muito focalizada.

John Zwerling parece uma versão aceitável de Nero Wolfe, o corpulento génio excêntrico da ficção policial criado por Rex Stout. O escritório de Zwerling fica num elegante edifício do centro histórico. O patrão é o tipo com barbas de Pai Natal que está sentado numa cadeira com um buraco no estofo de couro, usa jeans e tem uma grande nódoa na camisa.

A primeira coisa a fazer na altura, diz Zwerling, era argumentar que a acusação de homicídio de segundo grau era absurda num caso em que não existia a mais leve suspeita de dolo. Isso ele conseguiu. Depois de uma audiência preliminar, a acusação foi reduzida para homicídio involuntário. A segunda e mais espinhosa missão de Zwerling era montar a defesa para um caso que estava a ser tratado com o que por vezes parecia um zelo teatral.

Eis como a procuradora-adjunta Elizabeth Killeen resumiria o caso perante o júri: "A vida deste menino não tinha de terminar desta forma, numa maca do hospital. Falecido. Morto. Uma vida desperdiçada e perdida para sempre".

No fim, Zwerling tinha uma decisão-chave a tomar. Em casos-crime, os jurados querem ouvir o arguido. Zwerling gostava de Balfour e respeitava-a, mas deveria chamá-la a depor?

"Chegou a conhecê-la?", pergunta.

Sim.

"Então, viu a armadura protectora contra o mundo, como ela se fecha e se torna um soldado. Ajuda-a a sobreviver, mas pode parecer desconcertante para alguém que espera vê-la desfeita." Zwerling resolveu não arriscar.

"Acabei por apresentar o seu depoimento de outra maneira", diz ele, "de modo a que as pessoas pudessem ver a verdadeira Lyn - vulnerável, sem nada que enganasse, sem pose".

O que Zwerling fez foi dar a ouvir ao júri duas gravações áudio. Uma era o interrogatório da polícia no hospital, cerca de uma hora depois da morte de Bryce. As respostas dela são infinitamente tristes, quase ininteligíveis, meio a soluçar, meio a murmurar: "Matei o meu bebé", diz com a voz a tremer. "Oh, meu Deus, lamento tanto."

A segunda gravação era uma chamada para o 911 [número de emergência, como o 112 da UE] feita por um transeunte, nos primeiros segundos depois de Balfour ter descoberto o corpo e suplicado a uma estranha que pedisse ajuda.

Zwerling vira-se para o computador e abre um ficheiro áudio.

"Quer ouvir?"

A gravação do 911
Balfour está a reconstituir os seus movimentos naquele dia, depois do trabalho. Deixa o seu cubículo na sala 153A da escola do JAG [Judge Advocate General], sai pela porta da frente do edifício. A meio da tarde, tinha finalmente olhado para o seu telemóvel e descobrira que tinha uma chamada não atendida da babysitter do princípio da manhã. Ligou-lhe em resposta, mas foi encaminhada para o voice mail. Não se preocupou. Ela e a babysitter eram amigas e muitas vezes conversavam. Balfour deixou-lhe uma mensagem a pedir que lhe telefonasse de volta.

A chamada chegou quando ela estava onde se encontra agora, num amplo pátio com pavimento de pedra em frente da escola do JAG, a encaminhar-se para o parque de estacionamento.

A babysitter perguntou a Balfour onde estava Bryce. Balfour disse: "Que queres dizer? Está contigo."

São cerca de 20 metros até ao extremo do pátio, depois um lanço de escadas com 11 degraus, seguido de outros dois degraus que levam a um novo lanço de 12 e mais um degrau para descer do passeio, antes de cerca de dez metros de corrida desenfreada até ao carro. Balfour calcula que o trajecto todo lhe levou cerca de meio minuto, se tanto. Soube que era demasiado tarde quando, através da janela, viu a mão descaída de Bryce, e logo a cara, intacta mas sem vida, e a brilhar, diz Balfour, "como uma boneca de porcelana".

Foi uns segundos depois que a mulher que passava ligou para o 911.

A gravação é horrível de ouvir. É sobretudo a voz de uma mulher, tensa mas exacta, a explicar ao polícia do atendimento o que está a ver. Ao princípio não há barulho de fundo. Depois Balfour solta um uivo a plenos pulmões: "Oh, meu Deus, nãooo!"

A seguir, durante escassos segundos, nada.

Então, um grito ensurdecedor: "Não, não, por favor, não!!!"

Mais três segundos e: "Por favor, meu Deus, não, por favor!!!"

O que está a acontecer é que Balfour está a tentar a reanimação. Nesse momento, recorda ela, sentiu-se como se o seu corpo contivesse duas pessoas: Lyn, a eficiente e decidida salva-vidas qualificada em combate, e Lyn, a mãe incompetente que nunca mais ia voltar a ser feliz. Respiração, compressão, respiração, compressão. De cada vez que se endireitava para inspirar fundo, soltava o seu desespero. A seguir, voltava à vítima.

Depois de escutar esta gravação, o júri levou hora e meia a deliberar, incluindo o tempo do almoço. O veredicto de "inocente" foi unânime.

"Acho que este caso não devia ter sido levado a julgamento", diz o jurado Colin Rosse, um executivo da rádio, já reformado. "Pode ter sido negligência, mas foi sem intenção."

O representante dos jurados, James Schlothauer, um inspector da autarquia local, não discorda do processo jurídico; o caso Balfour era complexo, diz, e os factos precisavam de ser expostos publicamente. Mas os factos, acrescenta, também tornaram o veredicto de "inocente" inevitável. Foi "um maldito acidente dos grandes", que podia ter acontecido a qualquer um.

A qualquer um?

Schlothauer fica hesitante.

"Bem, aconteceu-me a mim."

O resultado não foi catastrófico, conta Schlothauer, mas o mau funcionamento foi semelhante: houve um dia em que, carregados de trabalho e de stress, ele e a mulher confundiram as suas tarefas e nenhum foi buscar a filha à creche.

"Fomos ambos para casa e foi 'Espera, onde está a Lily?' 'Pensava que ias buscá-la!' 'Eu julgava que eras tu que ias!'"

O que seria se essa confusão tivesse acontecido ao princípio do dia?

"A qualquer um", afirma Schlothauer.

Enganado por Deus
"Antes, era um tipo desses. Lia as histórias, e dizia: 'Em que é que estes pais estavam a pensar?'"

Mikey Terry é um empreiteiro de Maypearl, no Texas, um homem grande com olhos doces. No momento em que percebeu o que tinha feito, estava na cabina de um camião e a sua filha de seis meses, Mika, num veículo fechado debaixo de um sol escaldante do Texas num parque a 70 quilómetros de distância. A sua corrida frenética até ao carro foi feita a 160 quilómetros por hora com um reboque que arrastava toneladas de toros de madeira do tamanho de postes de telefone.

Naquele dia de Junho de 2005, Terry fora despedido há pouco tempo e tinha conseguido um dia de trabalho a construir uma parede no auditório de uma igreja católica mesmo nos arredores da cidade. Lembrou-se de deixar a filha mais velha numa ama, mas quando levava o bebé para outra ama num local diferente, recebeu um telefonema sobre um novo emprego permanente. E isso chamou-lhe, de facto, a atenção. Foi uma distracção fatal.

Terry, de 35 anos, não foi acusado de um crime. O seu castigo foi mais subtil.

Os Terrys são membros da Southern Baptist Convention [a maior igreja protestante da América]. Antes da morte de Mika, diz Mikey Terry, iam à missa todos os domingos, o domingo todo, do estudo da Bíblia de manhã até ao jantar à noite. Ele e a sua mulher, Michele, já não vão. É demasiado confuso, diz ele.

"Sinto culpa em relação a toda a gente da igreja que acha que todos somos abençoados. Já não me sinto abençoado. Sinto que fui enganado por Deus. E que enganei Deus. E não sei como enfrentar isso."

Passaram quatro anos, mas ele não se aproxima da igreja em que estava a trabalhar nessa altura. Enquanto a sua filha morria lá fora, ele estava lá dentro, a construir uma parede onde seria pendurado um enorme crucifixo.

Pais diabolizados
"Este é um caso de pura negligência maldosa da pior espécie... Ele merece a pena de morte."

"Pergunto-me se essa foi a forma de ele dizer à mulher que na realidade não desejava uma criança."

"Ele andava demasiado ocupado à caça de comissões de venda de imobiliário. Isto demonstra como as pessoas são moralmente corruptas nas profissões relacionadas com o imobiliário."

Estes são alguns dos comentários on-line de leitores ao artigo noticioso do Washington Post de 10 de Julho de 2008, que relatava as circunstâncias da morte do filho de Miles Harrison. Estes comentários são típicos do que acontece repetidamente quando ocorrem casos destes. Uma proporção significativa do público reage não apenas com raiva, mas também com sarcasmo.

Ed Hickling acredita que sabe porquê. Hickling é um psicólogo clínico de Albany, no estado de Nova Iorque, que estudou os efeitos de acidentes rodoviários com vítimas mortais nos condutores que sobrevivem. E diz que estas pessoas são muitas vezes julgadas pela opinião pública com uma severidade desproporcionada, mesmo quando se tratou claramente de um acidente, e mesmo quando indiscutivelmente não foi por culpa delas.

Os seres humanos, acrescenta Hickling, têm uma necessidade fundamental de criar e manter uma narrativa para as suas vidas em que o universo não é implacável e cruel, em que as coisas horríveis não acontecem ao acaso, e em que a catástrofe pode ser evitada se se estiver vigilante e se for responsável.

Nos casos de hipertermia, considera ele, os pais são diabolizados muito pelas mesmas razões. "Somos vulneráveis, mas não queremos que nos lembrem disso. Queremos acreditar que o mundo é compreensível e controlável e não ameaçador, que, se seguirmos as regras, ficaremos bem. Por isso, quando este tipo de coisas acontece a outras pessoas, precisamos de as colocar numa categoria diferente da nossa. Não queremos parecer-nos com elas e o facto de podermos ser é demasiado aterrador para lidarmos com ele. Por isso, elas têm de ser uns monstros."

Sofrer na solidão
A casa de Lyn Balfour em Ruckersville cheira a velas perfumadas e tem uma atmosfera levemente kitsch. Braiden balouça-se, satisfeito, numa cadeirinha de embalar, a mesma que era de Bryce, e gatinha sobre a manta de retalhos que também era do irmão. Ao mesmo tempo que escreve uma mensagem para Jarrett, que está no Iraque, Balfour vai verificando a fralda de Braiden, fazendo várias coisas ao mesmo tempo, como sempre.

"As pessoas acham que sou uma mulher forte, mas não sou", diz Balfour. "É só que, quando sofro, sofro sozinha..."

A chucha salta da boca de Braiden. Balfour passa-a por água e põe-lha de novo na boca.

"Cá bem no fundo, sinto que não tenho o direito de estar triste à frente dos outros."

Balfour diz que moldou cuidadosamente a cara que mostra ao mundo.

"Gostava de desaparecer, de mudar para um lugar onde ninguém saiba quem sou e o que fiz. Faria isso num ápice, mas não posso. Tenho de dizer quem sou. Sou a mulher que matou o filho e tenho de ser essa mulher porque o prometi ao Bryce."

A promessa, conta ela, foi feita enquanto segurava no corpo do filho no hospital. "Beijei-o pela última vez, e disse-lhe como estava arrependida, e que faria tudo o que estivesse ao meu alcance para garantir que aquilo não aconteceria a mais nenhuma criança."

Balfour tem feito isso de uma maneira que se adequa à sua personalidade: de tempos a tempos, em locais como o Sam's Club [hipermercados do grupo Wal-Mart], conversa sobre crianças com estranhos de modo a poder dizer-lhes o que fez a uma delas. Uma história frontal de advertência.

Ao contrário da maioria dos pais a quem isto sucedeu, Balfour está disposta a falar com a comunicação social. "Isto pode acontecer a qualquer um. É um erro, não um crime, e não devia ir a tribunal. Os carros precisam de dispositivos de segurança para prevenir isto." Raramente parece ter dúvidas ou estar especialmente angustiada. Ninguém a vê chorar.

"A verdade é que", diz ela, "a dor nunca diminui. Nunca abranda. Eu apenas a afasto por algum tempo, até estar em privado."

"Não consigo perdoar-me"
Miles Harrison está num Starbucks em Leesburg, puxando um guardanapo a seguir ao outro para enxugar os olhos.

"Magoei tanto a minha mulher", diz, "e, graças a seja qual for a maravilhosa qualidade que tem, ela perdoou-me. E isso faz-me sentir ainda pior. Porque eu não consigo perdoar-me".

Nos meses que se seguiram à sua absolvição pela morte do filho, o suplício público de Harrison continuou. A fotografia que a polícia lhe tirou quando o deteve voltou aos jornais depois de o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia ter protestado formalmente pela sua absolvição e ter ameaçado suspender o programa de adopções do país com cidadãos americanos. Durante meses, Harrison recusou-se a falar para este artigo, mas, no princípio de Fevereiro, disse que estava preparado.

"Eu imploro o perdão do povo russo", disse ele. "Há pessoas boas neste país que merecem ter um filho, e há crianças na Rússia que precisam de pais. Por favor, não castiguem toda a gente pelo meu erro."

Harrison é católico romano. Semanas depois da morte de Chase, voltou à sua igreja, onde o padre e os paroquianos o deixaram sofrer em solidão. Mais tarde, o padre abraçou-o e murmurou-lhe ao ouvido: "Eu estarei sempre aqui para si".

A igreja é a de S. Francisco de Sales, em Purcellville. O clérigo era o padre Michael Kelly. Na noite de Ano Novo, numa estrada varrida pelo vento, depois de uma chuva torrencial, quando parou para desviar uma árvore caída que ficara atravessada na estrada, o padre Michael foi atingido por outra árvore em queda e morreu.

Harrison não sabe o que pensar disto; já nada perdura inteiramente, excepto, para seu espanto, o seu casamento.

Na sua casa, Carol e Miles Harrison mantiveram o quarto de criança de Chase exactamente como estava, e há fotografias do filho por todo o lado. "Por vezes, olhamos juntos para as fotografias", conta Harrison, "e vejo a Carol a chorar. Ela tenta evitar que eu veja, e eu sinto-me tão culpado e ferido".

Harrison diz que sabe que não é provável que ele e Carol sejam autorizados a voltar a adoptar uma criança.

Inclina-se para a frente, com a voz a falhar num falsete cortado pelos soluços, como aconteceu na sala de audiências do tribunal no seu pior momento de vergonha.

"Eu impedi-a de ser mãe."

No Starbucks, voltam-se cabeças.

"Ela seria a melhor mãe do mundo."

Um dia de cada vez
À primeira, alguém atende o telefone, mas não diz nada. Ouve-se apenas o som demasiado alto de uma televisão e, passados poucos instantes, o clique do telefone a desligar-se. Alguns dias depois ele atende, mas a televisão não está mais baixo. Ligue mais tarde, diz. No terceiro dia, aceita a chamada.

"Como está?"

"Nem sei. A tentar levar um dia de cada vez."

A voz de Andrew Culpepper é monótona, como a de um homem em transe. As suas frases são curtas e cortadas. Este é o electricista do departamento de saneamento de Portsmouth, o que teve sorte. Não foi acusado criminalmente, ao contrário de Miles Harrison. Nunca teve de prestar contas à justiça.

"Está sozinho agora?"

"Sim."

"Ela deixou-o?"

"Sim. Está magoada e farta. A lidar com isto à sua maneira, imagino."

"Sente-se grato por não ter sido acusado?"

Não houve resposta.

"Andrew?"

"Não por mim, pelos meus pais. Não importa o que me façam. Nada que eu não faça a mim próprio todos os dias."

"Tem a certeza de que está bem?"

"Tento desviar o pensamento disso. Quando começo a pensar nisso, fico como..."

"Como o quê?"

Silêncio.

"Assim."

Casamento para durar
Como parte do seu plano para simplificar a vida, Lyn Balfour deixou o emprego. Vai tornar-se um pouco mais complicado em breve porque ela está grávida outra vez: a inseminação que fez naquele dia de Outubro foi bem sucedida. A criança é para Julho.

Os advogados de Balfour requereram ao tribunal que o registo da sua acusação fosse apagado. Um pedido como este em geral não é negado após uma absolvição, por se reconhecer que um inocente perante a justiça tem o direito de recomeçar com a folha legalmente limpa. Mas, neste caso, o procurador público Dave Chapman contestou-o e, contra o que é habitual, interveio na batalha jurídica relativamente insignificante.

No exterior do tribunal, Chapman explicou: "É muito raro haver oposição a que seja apagado o registo. Mas nós estamos contra por causa da dimensão deste caso, porque é o único registo público da morte de uma criança completamente vulnerável e indefesa."

Depois de meio dia de audiência, o juiz decidiu, dizendo que Balfour não tinha conseguido demonstrar que seria vítima de uma "manifesta injustiça" se os registos do tribunal não fossem selados.

Mais tarde, Balfour respondeu calmamente a perguntas dos media, como sempre. Não se mostrava emotiva, nem arrependida, apenas a passar uma mensagem. Vai ponderar apelar da decisão. Continuará a manifestar-se por uma maior consciencialização pública dos perigos de deixar crianças sozinhas dentro de automóveis. Soava, como sempre, um pouco fria.

Jarrett Balfour regressou finalmente a casa, após 18 meses no Iraque. Prolongou o seu tempo de serviço por duas vezes, à medida que as contas do processo jurídico aumentavam. Jarrett tem 30 anos. É alto, esguio e atraente, com o cabelo cor de areia todo penteado para trás. Parece um homem a avançar contra um vento forte.

Ao princípio, depois de voltar para casa, diz Jarrett, as coisas foram complicadas, com "soluços" na comunicação. Ele fazia um comentário inócuo sobre qualquer coisa que Braiden estava a fazer e Lyn tinha uma reacção exagerada, como se ele estivesse a pôr em causa a competência parental dela. Está a melhorar, acrescenta Jarrett.

Braiden tem nove meses e meio, exactamente a idade que Bryce tinha quando morreu. Lyn tem vindo a ter pesadelos outra vez.

Mesmo antes da tragédia, teve dois sonhos que parecem, em retrospectiva, premonitórios. Num deles, afogava acidentalmente Bryce; no outro, a morte era pelo fogo. Balfour acredita que estes sonhos foram enviados por Deus para a ajudar a preparar-se para o que estava prestes a sofrer.

Recentemente, sonhou que perdia o controlo da cadeirinha de Braiden, que rodava para o meio dos carros, na estrada. Não, não pensa que seja a mesma coisa, que esteja a acontecer de novo.

"Eu não conseguiria suportá-lo outra vez", diz Jarrett em voz baixa.

Portanto, existem tensões. Eles têm estado a resolvê-las. Os dois dizem que estão confiantes em que este casamento é para durar.

A dádiva
Depois de Jarrett sair para o trabalho, Lyn conta quanto a presença de Braiden os tem ajudado a sarar as feridas. Considera a família abençoada porque puderam ter outro filho: "Consegue imaginar perder o seu único filho e não ter esperança de ter outro? Consegue imaginar um desespero assim?"

É por isso, diz ela, que tomou uma decisão. Já confirmou e seria legal. Não haveria qualquer forma de uma autoridade a impedir porque se incluiria na categoria de uma adopção privada. Precisaria de um dador de esperma e de uma dadora de óvulo, porque não ia querer usar um óvulo seu. Isso tornaria a coisa demasiado pessoal.

De que está ela a falar exactamente?

Miles e Carol Harrison merecem outra criança, explica Balfour num tom contido. Eles serão uns pais maravilhosos.

Esta é a mulher de quem ou se gosta ou não se gosta, logo à primeira vista. É ousada e, dependendo do ponto de vista, refrescantemente aberta ou abrasivamente directa. Acima de tudo, é uma mulher decidida.

Balfour diz que, se for negada outra adopção a Miles e Carol Harrison, se eles esgotarem todas as hipóteses e continuarem sem uma criança, se vai oferecer para engravidar por eles, como uma dádiva.

Com pesquisa de Meg Smith. Exclusivo PÚBLICO/"The Washington Post"
Tradução de Eurico Monchique e Rita Veiga - Dito e Certo

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