A família sai do armário

E lembrámo-nos dos Talking Heads... Da forma como o "pós-punk" esquizóide, tal como praticado por três rapazes e uma rapariga, todos "arty", americanos e "educated", foi abraçando a "world music", o "outro", com sentido de aventura, exotismo e mantendo-se esquizóide até para espantar o politicamente correcto.

Lembrámo-nos da música dos Talking Heads (e por uma razão: Jonathan Demme, o realizador de "O Casamento de Rachel", interessou-se em 1984 pela banda em "Stop Making Sense") nas sequências de casamento de "Rachel Getting Married": todas as cores e ritmos do mundo, hip hop, samba, soul, convivem numa casa americana, abastada e "educated" - e multirracial, e algo esquizóide e razoavelmente exótica.

Houve quem se risse com essa visão que irrompe, exuberante: uma América demasiado ideal, confinada a um "nicho" social e cultural, disse-se, um olhar paternalista, e mais desejo e fantasia do que outra coisa. Demme retorquiu (citamos a conferência de imprensa no Festival de Veneza de 2008) que essa é a sua América, ela existe, é a que sempre conheceu, apenas não aparece nos filmes - e criou um pequeno acontecimento quando sentenciou que "O Casamento de Rachel" mostrava o desejo de uma nova era, "desejo de Obama".

Seja como for, o que podemos dizer é que no cinema de Demme, e falamos daquele que está antes de "O Silêncio dos Inocentes" (1991) ou de "Filadélfia" (1993), a energia, a excentricidade sempre foram o "american way", forma da América se cumprir ("Something Wild", de 1986, é um título emblemático). É essa a América que Demme abraça. É isso, o abraço, mais do que qualquer efeito de assinatura, o traço do cinema do realizador: a disponibilidade, calorosa, para personagens que começam por parecer excêntricas, bizarras, e que acabam por "fazer corpo" e ser o corpo - americano.

Esse abraço é dado aos membros da família de "O Casamento de Rachel". Kym (Anne Hathaway), toxicodependente, sai por um fimde- semana da clínica de desintoxicação para participar nos rituais do casamento da irmã mais velha, Rachel (Rosemarie DeWitt). Família abastada, multirracial (tudo sem ênfase, é assim, não há volta a dar, pós-racial então), rituais de música e dança do mundo. E é como se estivéssemos lá, com a ajuda de câmaras digitais entregues aos actores, que filmam o que se passa para tudo ter o aspecto de "home movie", e com a presença tutelar de Robert Altman ("O Casamento", de 1978) e do Dogma 95 - inspirações assumidas por Demme para destruir e voltar a erguer o formato da "comédia dramática".

Mas se a família é um lugar estranho para se estar, se os esqueletos começam "a sair do armário" num fim-de-semana de festa, os ressentimentos, as acusações - uma mãe (Debra Winger) emocionalmente afastada, a disputa entre as irmãs, uma morte no passado da família... -, Demme não faz um filme sobre "segredos e mentiras". Como naquela sequência em que a família discute quando entra em casa, iluminando as várias assoalhadas na escuridão, "O Casamento de Rachel" vai dando a palavra a cada uma das personagens: dá-lhes microfone e convoca-as para que elas façam o seu "outing". Pode haver aqui Altman, mas sem o cinismo. Os procedimentos podem também ser os do manifesto dinamarquês de Lars von Trier e dos outros, mas sem a ideia de que o cinema é um acto de violação. É por isso que o filme de que nos lembramos, e talvez não seja por acaso que em relação a ele se tenha falado também de uma "nova era" americana, é "Milk", de Gus Van Sant - um filme em que as personagens olham para o espectador (o que não costuma acontecer nos filmes de Van Sant) e não se esquivam ao olhar do espectador.

É nessa disponibilidade para abrir feridas e sará-las, nesse "outing", forma de dar e receber, que está a festa de "O Casamento de Rachel".

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