Quem é o maior?

Apareceram numa conferência de imprensa em Cannes, o ano passado, o pequeno da América Latina e o grande dos Balcãs. O que é que os juntou? "Não fomos suficientemente cristianizados para deixarmos de celebrar a vida como um carnaval. E vejam a quantidade de dinheiro que os nossos países devem ao Fundo Monetário Internacional e como continuamos a gostar da vida." Só mais esta: "O caos. Somos ambos a prova que o caos é mais importante do que a racionalidade".E, virando-se para Diego Maradona, Emir Kusturica elegeu-se como personagem dionisíaca, inscrevendo Diego no clube: "Estou convencido de que se o caos não fizesse parte da estrutura de Diego, ele não teria saído do underground das drogas e sei lá mais o quê". É falsamente magnânimo Emir - é como aqueles grandes abraços cúmplices que aniquilam. Há qualquer coisa de predador em movimento.

"Maradona" é a prova do "delito": o gigante dos balcãs devora o pequeno da América Latina. Desta forma: Diego Armando Maradona é transformado em personagem de Emir Kusturica, sob pretexto de um documentário sobre o futebolista. Mas não tenhamos piedade de Diego: o egocentrismo é outras característica que os dois partilham, eles que são como "rock stars". Emir é o primeiro a aparecer no filme, aliás, a tocar com a No Smoking Band. "Maradona do cinema" chamam-lhe, e também lhe chamam punk rocker dos Balcãs. Logo a seguir é a vez de Emir chamar punk rocker do futebol a Diego. Estão a ver? Na banda sonora ouvem-se os Sex Pistols, as imagens são do Mundial do México de 1986, quando a Argentina derrotou a Inglaterra, Maradona a apontar à baliza e, imagens de animação, a Rainha, Ms. Thatcher, Carlos de Inglaterra (e Reagan, e os Bush) a serem fintados por El Pibe. Malvinas vingadas (Terceiro Mundo, juntai-vos e tomai o poder).


O acto de Emir se apossar de Diego para falar de si torna-se tão alarmante como um assalto à mão armada: imagens de "Lembras-te de Dolly Bell?", "O Pai foi em Viagem de Negócios", "Gato Preto, Gato Branco", e a voz "off" do realizador: "Diego Maradona é uma personagem de cinema, podia ser uma personagem dos meus filmes. É como aquele homem que é o seu pior inimigo, que causa a sua própria perda, em ''Gato Preto, Gato Branco''", filme onde também há muita cocaína. "E se não fosse a coca, que jogador eu poderia ter sido!", exclama Diego. Imagens do bairro pobre onde Diego nasceu, imagens dos ciganos dos filmes de Kusturica, eis aquilo a que o realizador chama "o espírito aristocrático dos pobres". "Enquanto nos Balcãs a pobreza é sofrimento, no Ocidente é embaraço", ouve-se em "off".


O golo de Diego com a "mão de Deus" no jogo com a Inglaterra no Mundial do México, em 1986, diz o futebolista, foi uma "patifaria" que os pobres fizeram aos poderosos do mundo. Emir apanha boleia do guerrilheiro Diego - que tem Che e Fidel tatuados no corpo, só falta Hugo Chavez - para redireccionar o filme de novo em direcção ao seu ego: "Venho de um país, a Sérvia, que foi um dos 24 que foram bombardeados pelos americanos depois de 1945, depois da II Guerra Mundial. Bombardeamentos feitos com a desculpa de serem acções humanitárias". "Maradona by Kusturica", diz o título original. Seria assim se o documentário manifestasse genuíno interesse pelo outro.

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