O que o tempo faz connosco

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A rapariga que se oferece para levar o saco, a mala, o telemóvel, talvez não seja uma desconhecida, como parece. A mãe que se vira contra a filha talvez nem seja mãe. Talvez seja apenas alguém que se fartou "de dizer as coisas dos outros", que deseja dizer as suas coisas.

É a primeira parte de "Botox", criação da companhia de teatro Primeiro Andar, de Cristina Carvalhal e de David Santos. Engana-se quem pensa que já contámos muito. Há uma contínua transformação das personagens ao longo do espectáculo, que hoje é estreado no Teatro Helena Sá e Costa, Porto.

Esta é a última de cinco fases. É preciso recuar a Setembro de 2006 para lhe apanhar o fio. Foi nessa altura que Inês Mariana Moitas, Joana Luz Figueira, José Nunes e Pedro Leitão começaram a idealizar um espectáculo sobre o tempo, qual entidade abstracta. O tempo inquietava-os. O não ter tempo para se fazer o que se quer. O perder tempo. O viver noutro tempo.

Empenharam-se na pesquisa, recolheram material. Fizeram uma primeira residência artística, em Resende, em Julho de 2007. Desafiaram Miguel Castro Caldas e Pedro Eiras a escrever, Cristina Carvalhal a encenar. Juntaram-se os sete no Porto, em Agosto de 2008. Definiram universos dramatúrgicos, esboçaram fragmentos textuais. Na quarta residência artística, em Dezembro de 2008, David Santos já estava com eles. Pedro Eiras e Miguel Castro Caldas trouxeram textos.

Pedro Eiras ia mais adiantado. O grupo dedicou-se à análise dramatúrgica, à experimentação cénica de "Corda". Miguel Castro Caldas estava mais atrasado. "A morte tem de vir" foi-se construindo a partir de improvisações. E talvez por isso o texto de Pedro Eiras seja mais linear, mais dele, e o de Miguel Castro Caldas mais experimental, mais do grupo. "Acaba por ser muito do que os actores são e trouxeram", como diz Cristina Carvalhal.

Volvemos à cena. Três actores em palco procuram algo. E encarnam personagens, recriam situações, pronunciam frases - a ver se esse algo lhes aparece. "Calem-se lá! Deixem-me ouvir o presente!"

O que fazemos com o tempo, o que o tempo faz connosco. Há uma passagem de um mundo para outro, de uns mundos para outros. Há uma passagem de fora para dentro. Dentro de casa, uma mulher espera o seu único filho, António. Enquanto espera o filho, a mulher sem nome recorda o marido, José Maria, que tinha "muito jeito com as mãos", que consertava tudo o que precisava de conserto ali em casa, e que um dia teve um acidente. Tem apego à casa, que a acolhe há muitos anos. Custa-lhe vê-la degradar-se, o filho alheio ao seu destino.

Dentro de casa, António, recorda a mãe, que lhe estava sempre a perguntar: "Quando é que te casas?" O relógio de pêndulo deixou de funcionar. O caruncho deu cabo das madeiras. As portas rangem. Há telhas partidas. Há muita tralha. "A mãe não deitava nada fora". Não tem apego pela casa, fria, húmida. Não irá cuidar dela, como a mãe tanto lhe pedia.

Dentro de casa, uma potencial compradora passa a vida em revista. "Morava num apartamento novo, com as coisas todas a funcionar". Morava com Roberto, um engenheiro informático mais velho. Deixou o curso de Belas Artes para viver com ele. Gostava de morar com uma casa com jardim. Mas restaurar é mais caro que construir. E  talvez não aguente o peso desta casa.

Moral da história? "Não sei se tem. Cada vez mais se pede ao público que seja o último autor, que dê sentido ao espectáculo", responde Cristina Carvalhal.

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