Convirá desde logo desmontar duas"ideias feitas" que parecem seguirpara todo o lado o novo filme deDanny Boyle, complementares e sóaparentemente contraditórias: uma,que se trata de um filme"contaminado" pela energiafantasiosa do cinema de Bollywood,outra, que se trata de um objecto"realista" que olharia para a Índiacontemporânea como a indústria docinema local nunca o faz.
Ora, lá porBoyle contar uma história dosbairros de lata de Bombaim sobreum miúdo cujo caminho em buscada felicidade e em fuga da miséria oleva à edição local do concurso"Quem Quer Ser Milionário", issonão faz do filme realista. Antes pelocontrário: "Quem Quer SerBilionário?" é tão fantasista comoum musical de Bollywood ou, maisao caso, um dos velhos romancespopulares de Charles Dickens, aosquais vai buscar os truques todos domiserabilismo inspiracional, dotriunfo da bondade e do espíritohumano e do herói de coração puroque triunfa contra todas asadversidades, que alimentaram osmelodramas de Hollywood durantedécadas. E a energia veloz e garridaque transporta o filme tem menos aver com Bollywood do que com aestética do teledisco e do zapping -o que é particularmente apropriadopara uma história que (na maisinteligente das suas actualizações domodelo dickensiano) usa a televisão(onde antes era a literatura, oesforço ou o trabalho) como"oportunidade de saída".
Na verdade, "Quem Quer SerBilionário?" é um filme muito inglês,no modo como resume tudo a umaquestão social, de classe emobilidade, reflectindo o modocomo o velho império colonialdeixou as suas marcas nos países dosquais se foi retirando e como aindahoje olha para a herança que deixou.E, para lá do elenco local, darodagem nas ruas de Bombaim eda extraordinária banda-sonorade A. R. Rahman, degenuinamente indiano hárelativamente pouco numfilme que evita o postalturístico do exotismo mascai no seu exacto oposto, opostal do miserabilismoterceiro-mundista quepinta a Índia como paíspobre e miserável onde osistema de castas e amobilidade socialconspiram para manter todaa gente no seu lugar -provavelmente tão próximo(ou tão afastado) da realidadecomo o outro. É, aliás, por aíque (mesmo adaptando oromance do diplomata indianoVikas Swarup) "Quem Quer SerBilionário?" se revela ser tãofantasioso como o cinema deBollywood que, embora de outromodo, também conta histórias dotriunfo da bondade e do espíritohumano sobre a adversidade do"establishment"...
O problema essencial do filmenão é, contudo, nada disto (que, sópor si, não é sinónimo de um filmemenos interessante, apenas de umobjecto muito menos original doque à primeira vista parece). Não, oproblema é que, para Boyle, umcineasta por natureza cinético, estahistória e estas personagens não sãotão interessantes em si própriascomo enquanto um pretexto paratentar agarrar em filme a vertigem ea velocidade de Bombaim, paratentar criar algo que reflicta aenergia de uma cidade em constantemovimento e construção, umaespécie de "sinfonia de uma capital"transportada para os nossos dias. Éuma ideia intrigante, mas Boyle nãoé capaz de a converter em algo maisque um puro exercício de estilo namecânica da construçãocinematográfica, canibalizandoideias daqui e dali para criar umfilme que é bem mais convencionaldo que o seu estilo vistoso einteligente construção em "puzzle"sugere, sem nunca nos conseguirfazer esquecer que esta visão deBombaim é muito mais a de umestrangeiro que procura aplicarordem e lógica ao caos aparente.
Asdez nomeações para osOscares são, apenas, odeslumbramento deuma Academia quesimpatizou com ovelho melodramahollywoodianoescondido por trásda montagemacelerada e dafotografia saturadae que ainda achaque "isto" é cinemaindependente.Sejamos claros:Danny Boyle jáfez muito melhor ("Trainspotting", "28 DiasDepois", o escandalosamentedesconhecido "Sunshine"), "QuemQuer Ser Bilionário?" é fita menorno seu cânone.