Um mestre entre os poetas líricos

Os poemas de Horácio são exemplo de uma perfeição formal exemplar, de uma enorme criatividade.

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Em toda a História da Literatura, a poucos nomes quadra tão bem quanto a Horácio (65 a.C. a 8 a.C.) o título de “mestre na arte de versejar”. Senhor de um tecnicismo notável, como convém a qualquer poeta (e, por maioria de razão, a um poeta latino, sujeito a apertadíssimas regras de prosódia), nem por isso essa submissão a ditames técnicos lhe diminuiu a riqueza ímpar do seu lirismo.

Os seus poemas são exemplo de uma perfeição formal exemplar, qualquer que fosse o modelo métrico adoptado - e são inúmeros os metros que cultivou, quase todos os que lhe disponibilizava a poesia lírica herdada dos velhos poetas gregos; mas são, igualmente, exemplo de uma enorme criatividade, que aliava, como poucos, engenho e arte, em raro fulgor poético. Temas, imagens, emoções, ideias, sentimentos, olhares, percepções, tudo nele contribui para um edifício lírico de incontestável beleza.

Do ponto de vista técnico, avulta o rigor, a simetria, a busca constante da perfeição; cada palavra obedece a um desígnio e uma estratégia de largo amadurecimento, que manifestam um profundo sentido de equilíbrio e uma arquitectura minuciosa, onde todos os pontos se interligam por fios habilmente desenhados.

As mais das vezes, busca no quotidiano as suas imagens (a navegação, os campos, o clima, as intempéries, a lavoura, os animais) ou recolhe-as no tempo cósmico (as estações do ano e o seu fluir incessante, num devir cíclico que interroga com persistência) ou, ainda, molda-as no universo da mitologia; assim nos deixa sugestões múltiplas, por via de regra ambíguas, como convém à poesia. É o poeta da moderação, cantor da aurea mediocritas ("áurea mediania"), que erigiu como norma de conduta, e a essa moderação parece ter subordinado a vida e a poesia; mas é, também, um poeta do amor, ou antes, de amores, que muitos e variados eram, entre homens e mulheres, os objectos da sua entrega, física, sem dúvida, mas raro apaixonada, no sentido em que o irracional poucas vezes dele se apoderou: Lídia, Cloe, Neera, Pirra, Lide, Lice e tantas, tantas outras, a par de Ligurino e Licisco, entre outros.

Era, digamos, um espírito contraditório: ao mesmo tempo irrequieto e apaziguado, a balançar entre o estóico e o epicurista, refractário a dogmas, avesso ao protagonismo e a palcos, mas sempre próximo do Imperador e do poder, desejoso do conforto sossegado da sua modesta courela na Sabina, mas pressuroso a acorrer junto de Mecenas ou aos salões imperiais. Não consente, por isso, leituras unívocas. A ele se devem versos que vieram a tornar-se máximas de acolhimento universal: “colhe cada dia” (carpe diem), “confiando o menos possível no amanhã"; “esquiva-te a perguntar o que amanhã sobrevirá, / e considera um lucro cada dia que te der a Fortuna”.

Talvez por tudo isso fosse, ao tempo de Augusto, fundador do Império romano e da sua grandeza, uma espécie de consciência estética do regime, um quase pontífice de uma corte de poetas, numa época que viu florescer os maiores da Literatura Latina, como Virgílio, Propércio, Tibulo, Ovídio, Galo e vários outros poetas de menor nome. Talvez por tudo isso, também, veio a tornar-se um dos poetas de Roma de maior fortuna entre os vindouros e, portanto, um dos mais imitados ao longo de toda a História da Literatura. Entre nós, adoptaram-no como exemplo os melhores dos quinhentistas, como Camões, António Ferreira, Diogo Bernardes, Pêro de Andrade Caminha e muitos dos que escreveram em Latim, os nomes mais sonantes do Neoclassicismo e do Arcadismo (Correia Garção, Filinto Elísio, a Marquesa de Alorna) e, já no século XX, para não abusarmos da enumeração, o pessoano Ricardo Reis.

Deixou-nos uma “Arte poética” (título tardio, de autoria alheia, para a sua “Epístola aos Pisões"), Sátiras, um livro de Epodos e quatro livros de Odes, além do “Carmen Saeculare”. São estes últimos (as “Odes” e o “Cântico Secular") que nos trouxe, em boa hora, no ocaso de 2008, em tradução portuguesa, Pedro Braga Falcão. É estranho que um poeta de tão larga influência e tamanha virtuosidade, ciclicamente traduzido em tantas línguas, tivesse de esperar tantos anos por uma nova tradução integral em língua portuguesa, depois da de José Agostinho de Macedo, no começo do século XIX.

Pedro Braga Falcão, depois de uma breve introdução, onde sumariamente fala do poeta e da natureza e importância da sua obra, seguida de um utilíssimo “Roteiro para uma leitura temática das Odes” e de uma apresentação dos “Metros das Odes”, acessível, apenas, a conhecedores da prosódia latina, deixa-nos uma tradução que assenta no esforço do respeito pelas formas horacianas. É um esforço tão meritório quanto difícil, que reclama muito trabalho de lima e não menos engenho, sabido como é que o trânsito da prosódia latina para a linguagem portuguesa suscita desafios de desfecho nem sempre fácil.

Penoso terá sido o trabalho, reconheça-se, mas de resultado francamente positivo. Aqui e ali, talvez se justificasse pensar um pouco mais no leitor do século XXI, a quem se destina a tradução, o qual não deixará de conhecer alguma sensação de estranheza ante opções que soam a desuso, como “incompossível oeano”, “ebúrnea geada” ou “insondada”. São raros, porém, tais momentos. As soluções adoptadas para os passos mais difíceis são, por via de regra, equilibradas e ajustadas ao gosto moderno, como convém. Se o lirismo horaciano é alcançado nesta tradução, essa é a velha questão, inultrapassável, do velho aforismo italiano que diz que “traduttore... traditore”. O eterno fado de quem traduz, afinal. O saldo, é justo dizê-lo, é francamente positivo. E o Natal de 2008 trouxe-nos mais esta agradável prenda dos velhos Clássicos latinos, que a Cotovia, com persistência, nos vem dando, para nosso deleite.

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