Umas semanas noutra cidade

Mandaria uma ideia feita (emuito, digamos, "publicitária")sobre Woody Allen dizer que elefoi para Barcelona para se"revigorar". Parece-nos questãode somenos, essa. A ordem denecessidade é doutro género: foipara Barcelona porque precisava deir para algum lado que não fosseNova Iorque, que não fosse naAmérica. Mais do que o londrino"Match Point", pequeno ensaiodostoievskiano-bressoniano sobre ocrime, o castigo e o acaso, "VickyCristina Barcelona" é um filme sobrealgo que na literatura também setransformou em género ousubgénero: os americanos noestrangeiro. Escolheu Barcelona e osseus (m)ares mediterrânicos, e ofilme confere sentido a essa escolha,mas podia ser outra cidadequalquer.

Temos assim duas jovensamericanas arrancadas à sua cápsulanova-iorquina para umas férias deVerão na capital da Catalunha. Vicky(Rebecca Hall, maravilhosa) eChristina (Scarlett Johansson, maisindolente do que nunca), muitoamigas mas diferentes emtemperamento como a água e ovinho. Christina é candidata aartista, saltita de namorado emnamorado, tem costumes que amoralidade comum daria por"dissolutos"; Vicky é maisconservadora, mais "uptight", temcasamento marcado com um rapaznovaiorquino tão "uptight" comoela, a moralidade comum nãoencontraria muita coisa que lhereprovar. Depois o desenvolvimentoda história confirma isto, assimcomo os dilemas das raparigasnascerão em grande parte dasrespectivas configuraçõespsicológicas, mas ainda antes deacontecer alguma coisa já a voz "off "nos explicou como eram Vicky eChristina, sobrepondo-se aos planosque as mostram, de táxi, no trajectoentre o aeroporto e a cidade (emsequência que abrira com a câmarafocada nos grandes mosaicos quedecoram o aeroporto de Barcelona,primeiro e subliminar sinal de que asraparigas chegaram a terra perigosae sanguínea, bem diferente da sóbriae neurótica Manhattan). E a voz"off" de "Vicky Cristina Barcelona"tem que se lhe diga: em dicçãorápida e radiofónica, instilagravidade (o narrador fala nomesmo tom em que narraria umainvasão de marcianos, por exemplo)e uma medida de urgência, como seWoody a usasse também paracortar caminho, para ir directo aoessencial, para não perder tempocom o que é da praxe. A gravidade ea urgência trazem à história umsentido de angústia que começa porparecer desproporcionado, mas queno fim se transformou na exactaproporção da angústia em que ahistória quer (e consegue) trabalhar.

Na "mise en scène" de Woody Allenisto traduz-se por uma securainvulgar, transições rápidas entrecenas (contem os planos de ligação,as coisas que são "da praxe": quasenão existem), uma velocidadeinterior que nunca é certa (aprimeira cena de sedução entreJavier Bardem e Scarlett no quartodele, tão longo preliminar para tãoabrupto desenlace), mesmo oscampos-contracampos têm umatensão especial.Claro que a grande estranhezacom que as raparigas se confrontamé menos a cidade (reduzida aapontamentos, a Sagrada Família, oParc Guell, etc, mais uma visita àsAstúrias porque para Vicky cedernão basta a estranheza, é precisa a"estranheza dentro da estranheza")e mais os seus habitantes. Bardem,primeiro, Penélope Cruz, depois.

Nafronteira com o estereótipo, Bardeme Cruz são quase "monstros" - ele ahipérbole do "macho latino",hedonista e sexualmente insaciável,ela um expoente da feminilidade"mediterrânica", amante tãopossessiva como maternal, umaforça da natureza como uma Lorenou uma Magnani. O que, atravésdeles, Woody Allen faz projectardiante de Vicky e Christina é umaespécie de filme da latinidade,sanguínea e intempestiva,totalmente incompreensível para asraparigas, que só serve (semprecomo "projecção") para lhes criar aperspectiva de qualquer coisa que sepassa demasiado depressa edemasiado profundamente para queelas a consigam agarrar. A gravidadeagudiza-se (passe o paradoxo),"Vicky Cristina Barcelona"transforma-se num filme sobre apassagem do tempo, sobre osamores e as oportunidades perdidas,um jardim chekhoviano plantado àbeira do Mediterrâneo. A angústiaestampada nos rostos de Vicky eChristina quando o filme as deixaexplica por que razão Woodycomeçara por insistir nos seuscostumes: nenhuma delas está certa,no universo alleniano a"moralidade" nunca foi umaresposta à altura do fatalismo que aengole.

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