Cruzando mares: Pessoa e os outros

"Poetas do Atlântico: Fernando Pessoa e o Modernismo Anglo-Americano" foi recentemente escolhido como finalista para o mais prestigiado prémio brasileiro, o Prémio Jabuti.

Da autoria de Maria Irene Ramalho, professora catedrática na Universidade de Coimbra, distinguida em Outubro com o não menos prestigiado "Mary C. Turpie Award", da American Studies Association, pela primeira vez entregue a alguém de cidadania não americana, este livro é indubitavelmente a leitura mais original que nas últimas décadas se fez sobre Fernando Pessoa e o seu lugar central para o entendimento do modernismo anglo-americano e das poéticas da modernidade.

Prefaciado por Harold Bloom, que fala do "modo soberbo como a autora articula" Walt Whitman, Fernando Pessoa, Álvaro de Campos e Hart Crane, esses "quatro grandes poetas do Atlântico", (p. 11), o livro surgiu originalmente em versão inglesa, em 2003, com a estampa da University Press of New England e com o título "Atlantic Poets: Fernando Pessoa's Turn in Anglo-American Modernism", tendo sido publicado em 2007 no Brasil, pela Editora UFMG.

Quem está já familiarizado com o trabalho notável produzido por Maria Irene Ramalho nas áreas da literatura anglo-americana, da literatura portuguesa, dos estudos feministas e da literatura comparada, reconhecerá algumas das teses e dos conceitos que estruturam este livro, recordandoos presentes, ou incipientes, no extraordinário número de ensaios da sua responsabilidade, publicados de há mais de uma década para cá em Portugal e no estrangeiro. E verá ainda material muito novo, e de igual qualidade. Desse (sustentável e moderno) reciclar de matérias se obtém um livro rigorosamente coerente e orgânico que parte do princípio teórico de que "não há literatura, (...) apenas interliteratura", de que "não há cultura, (...) apenas intercultura" (p. 17), e que estabelece Pessoa, enquanto "grande mestre heteronímico de alteridades passafronteiras" (pp. 17-18), como o pano de fundo onde se cruzam o estilhaçar das várias identidades e das culturas nacionais e uma nova concepção de lírica moderna. Sirvome de uma afirmação da própria autora: "Colocar Pessoa no modernismo anglo-americano (...), sem o esquecer poeta português, é desafiar noções convencionais de literatura nacionais e perguntar radicalmente pela 'identidade', quer poética, quer nacional e cultural. Ao conceber a sua poesia como um campo aberto de gestos autointerruptivos de alteridade imaginativa, ao mesmo tempo que se situa na 'pátria-sua-língua', Pessoa ensina-nos a ler não só a poesia, mas o mundo crescentemente trans-cultural em que vivemos." (p. 313).

"Os poemas são escritos em línguas? Em nações? Ou mesmo em impérios?" (p. 223) -o conceito pessoano de "nação" é tido como fundamental para iluminar a forma como, na poesia norte-americana, se constrói a ideia de "América", desde Emerson e Whitman a Hart Crane -uma análise de "The Bridge" (aqui lido como um poema "tanto sobre a América e o mundo moderno como sobre a poesia e as dificuldades do poeta moderno" (p. 119) demonstrará que, através da figura tutelar de Whitman, a Atlântida de Crane se instaura, tal como a Mensagem, de Pessoa, como "ficç[ão] sedutora[s] e credíve[l] do modernismo poético", adquirindo o Mito da América e o Quinto Império de Pessoa um idêntico estatuto.

Atravessando outros autores, Maria Irene Ramalho trabalha a questão das políticas sexuais, das tensões entre o centro e a periferia, das estratégias de busca de um lugar de eleição para o poeta num mundo que se afigura desprovido de aura. É assim que, por exemplo, através do conceito de arrogância e da problemática em torno das margens e dos centros, é possível aproximar Pessoa não só do seu mais óbvio "parente" Walt Whitman, mas ainda da sua "parente" menos óbvia Emily Dickinson, na famosa definição "o meu negócio é a circunferência".

Nos sete capítulos que compõem o livro, a ensaísta expande os conceitos pessoanos de Atlantismo e Interrupção, de forma a entender a poesia lírica moderna, para depois avançar os conceitos de Desassossego, Arrogância e Intersexualidade, deduzidos do próprio Pessoa, de forma a estudar a poesia de Walt Whitman, Emily Dickinson, Hart Crane, ou T.S. Eliot, mostrando as inter-relações entre esses poetas norte-americanos e Fernando Pessoa, e seus heterónimos Álvaro de Campos e Alberto Caeiro -nunca deixando de os fazer dialogar com a grande tradição romântica (a alemã, a inglesa) e convocando poetas como Wordsworth, Coleridge, Keats ou Shelley, demonstrando, por exemplo, como "a representação indirecta do poeta de Mensagem (...) tem as suas raízes na poética romântica de Shelley" (p. 47). Mas os capítulos ocupam-se também de Wallace Stevens, aproximado de Caeiro através da "figura judaicocristã do anjo", evocação do "autoproclamado bardo americano" (p.224), contemplando ainda, com maior ou menor ênfase, a poesia dos norte-americanos Robert Duncan, John Ashberry, Adrienne Rich, Prospero Saiz, ou da venezuelana Hanni Hossot, ou do português Alberto Pimenta, para mostrar a inevitável relação entre poesia e política, ou de como os limites do político podem ser o espaço onde "irrompe a liberdade, quer se trate de amor ou de poesia" (p. 281).

Quando acaba de sair, editado pela Caminho, o excelente e tão oportuno "Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português", coordenado por Fernando Cabral Martins, a vinda a lume em Portugal de "Poetas do Atlântico" representa, na proposta absolutamente original de releitura dos papéis vários desse que foi seguramente, no dizer de George Monteiro (citado pela própria autora), "a última grande descoberta da poesia ocidental do século XX", uma extraordinária mais-valia para os estudos pessoanos, o nosso entendimento dos vários modernismos e a nossa reavaliação da poesia lírica - ou da tradição poética que fundamente nos funda.

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