Como se fosse esta noite a última vez

Começo pela descrição do cenário: um pedaço de entroncamento ferroviário, com o piso ondulante, e os carris com lombas, descendo colina abaixo, plateia adentro, cinco linhas ao todo. Todas as localizações da peça são condensadas nesse cenário, onde se sobrepõem as cadeiras e mesas precisas para evocar o salão, a floresta, a escola e, claro está, a linha. Platonov é um dissoluto mestre-escola na casa dos trinta, aparentemente profundo, talentoso e interessante, mas que não passa de um exemplar frívolo da sua classe e geração. Recambiado para a província, enrola-se na luxúria de mulheres necessitadas. Podia ser um jovem brilhante, mas não sabe que comboio apanhar.

Posta a metáfora em cena, de que fala este espectáculo? O tom da dramaturgia é autosatírico.

A cupidez de Platonov, subjectiva, torna-o cómico, enquanto a consciência objectiva da desgraça das personagens fálas parecer trágicas. A peça fala de nós: crítica, imprensa, leitores, espectadores, unidos pelo verbo na primeira pessoa do plural.

Escolhe-se a vedeta, comentam-se os temas, promove-se o produto, e o promotor. Seduzidos pela aparência e gratificação imediata, perdemos o comboio do real.

Mas o espectáculo fala é do teatro.

Tchékhov era contrário a afirmações religiosas ou políticas, e só estava interessado na ideologia da arte. É essa fé que Nuno Cardoso professa.

A teatralidade afirma-se enquanto linguagem artística autónoma, o encenador desenvolvendo, à garupa dos temas de Platonov, uma síntese das suas pesquisas, fetiches e vícios de estimação. A partir das técnicas de cada actor, assimiladas pelo todo, sucedem-se as imagens, num grande painel vivo de tons burlescos, com entradas e saídas naturais como num sonho. A peça procura criar um animismo próprio, o do palco, onde a multidão de actores invade e povoa a arena, não se sabendo mais quem faz de criança ou de atracção especial.

Platonov, a personagem, é dispersivo e inconsequente.

O espectáculo não. Durante quase quatro horas, o faz-deconta dos actores, actuando como se fosse essa noite a última vez, faz do jogo de cena uma condição para o pensamento.

Os actores arriscam as falas e o corpo com espírito concreto. Ao fazer durar o acontecimento, o espectador participa no ritual não como espectador passivo mas como membro activo de uma comunidade. Talvez o espectáculo pudesse ser mais rasgativo, se furasse a quarta parede, fabricando em lugar da ficção um acto radical com o público, levando até ao fim a criação da coisa comum.

Diz Lehman, no seu Teatro Pósdramático, que "o teatro, não como tese, mas como prática, representa exemplarmente uma ligação de elementos heterogéneos que simboliza a utopia de uma 'outra vida': trabalho espiritual, artístico e corporal, actividade individual e colectiva são aqui conciliados." É esta irrupção de vida que Platonov faz. Ao expandir-se, enquanto técnica teatral, como se um sismo desenrolasse a terra, o espectáculo afirma-se como um lugar a partir de onde pensar o real, e não mero vasilhame. Só no TNSJ.

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