Nos labirintos do cinema português

Se achava que já possuía uma cópia definitiva de "O Pai Tirano" ou de "O Pátio das Cantigas", desengane-se: a nova edição conjunta, lançada pela Lusomundo, em apropriada época natalícia, bate tudo o que conhecíamos, tanto em termos de restauro de imagem (em alta definição), como na clareza sonora, restituindo os dois clássicos da comédia portuguesa a uma condição absolutamente única. Não está sequer em questão a qualidade intrínseca dos objectos propostos, sobejamente festejados. O que surpreende é a espantosa coerência de tudo o que se inclui nos dois discos duplos, acompanhados por atraente livro, "Ribeiro e Ribeirinho", com coordenação de José Matos Cruz, assinalando condignamente o outro (para além do indiscutível Manoel de Oliveira) centenário de 2008, o de António Lopes Ribeiro.

No primeiro conjunto, consagrado a "O Pai Tirano" (1941), contextualiza-se a película com o excelente documentário biográfico de Lopes Ribeiro, "O Carro da Estrela" (cerca de uma hora), realizado para a televisão, em 1989, por Monique Rutler, para além de extensos (e esclarecedores) depoimentos de José Matos-Cruz (numa perspectiva mais histórica), da sobrinha do realizador, Maria Manuel, salientando sobretudo factos de natureza pessoal, ou de Antunes João, historiando a relação videográfica com a editora.

Aproveita-se ainda a ocasião para integrar uma cópia razoável do documentário "A Exposição do Mundo Português" (do mesmo ano), exemplo acabado da sua função como cronista de um período controverso. Há também uma entrevista com o cineasta, uma introdução de Eurico de Barros e curiosidades de época, todo um trabalho minucioso de preciosa contextualização.

O outro filme desde DVD duplo, "O Pátio das Cantigas", assinado por Ribeirinho e produzido pelo irmão, integra mais duas biografias televisivas de final dos anos 90, muito bem restauradas, sobre Vasco Santana e António Silva, para além do pouco visto "As Rodas de Lisboa" (1951), sobre os transportes urbanos da capital, co-realizado pelos dois irmãos, e das seis curtas-metragens "Zé Analfabeto" (1952) da campanha de educação de adultos protagonizadas por Vasco Santana.

No cômputo geral, uma óptima contribuição para a recuperação videográfica de objectos icónicos do Estado Novo e do Cinema Português. No final, ficam as muitas perguntas que urge formular - "Água mole em pedra dura...". Para quando, em idênticas condições, a edição de filmes (julgamos que todos eles na "posse" da Lusomundo) como "As Pupilas do Senhor Reitor" (Leitão de Barros, 1935), "A Revolução de Maio" (Lopes Ribeiro, 1937), "A Rosa do Adro" (Chianca de Garcia, 1938) - quanto mais não seja por constituir uma rara ocasião para ver a genial Maria Lalande, recuperando, inclusive, o interessante documentário da RTP sobre o realizador, recentemente exibido no canal Memória -, "Lobos da Serra" (Brum do Canto, 1942), "Amor de Perdição" (Lopes Ribeiro, 1943) ou "Camões" (Leitão de Barros, 1946), nunca saídos em DVD? Quanto a "Aniki-Bóbó", quando se ultrapassam, em nome do interesse público, os problemas existentes? Quem tem os direitos de obras fundamentais como "Maria do Mar", "Lisboa, Crónica Anedótica" (Leitão de Barros, 1930), "Gado Bravo" (Lopes Ribeiro, 1934) ou "A Canção da Terra" (1938) de Jorge Brum do Canto, cineasta praticamente ausente da edição em DVD (incluindo a fulcral experiência de "A Dança dos Paroxismos", de 1929)? Por que não aproveitar a lógica dos extras para fornecer a quem se interessa pela História do Cinema Nacional objectos sem valor comercial, em si próprios, de que apenas se conserva a banda-imagem - casos de "Bocage" (1936), "Os Fidalgos da Casa Mourisca" (1938), "Varanda dos Rouxinóis" (1939) ou "Feitiço do Império" (1940), para apenas mencionar alguns? No caso deste último, sempre referido como perdido, em termos de som, o que significa o facto de aparecer, no citado documentário sobre António Silva (feito para a RTP, em 1997), uma sequência com perfeita definição sonora: trata-se de uma excepção ou existirá no arquivo da televisão pública uma outra cópia "integral"?

Quem terá a ousadia de pegar no catálogo (mudo) da Invicta Filmes? E a obra de Manuel Guimarães quando terá direito a tratamento condigno? E, para continuarmos a avançar no tempo, para quando a indispensável integral de Paulo Rocha? É que muito falta fazer para nos restituir um património fílmico, limitado mas essencial, a fim de conseguirmos atingir uma visão de conjunto. Não basta reincidir (bem) no que possui maior valor comercial. À Lusomundo (mas não só), detentora, neste momento, do mais vasto catálogo da produção nacional, caberá a tarefa agora prosseguida (a Madragoa Filmes já iniciara a revisita), com tão bons resultados. Cá ficamos à espera, uma vez que o conhecimento do Cinema Português deveria sobreporse a mesquinhas discussões de dinheiros. Esqueçam todos a (falsa) mina de ouro.

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