Era um trabalho sujo mas que alguém tinha de fazer, e durante anos ele fez esse trabalho: Anthony Pellicano era o homem a quem Hollywood ligava quando havia problemas. A meio da semana passada, o detective privado foi condenado a 15 anos de cadeia. Agora toda a gente fala dele na terceira pessoa - até ele
Anthony Pellicano tornou-se conhecido em 1977 quando encontrou, em directo para a televisão, um saco de plástico com os restos mortais do terceiro marido de Elizabeth Taylor, Mike Todd, cujo corpo tinha desaparecido misteriosamente, dias antes, de um cemitério de Chicago.
Era Outono e lá estava ele, com os pés na lama, a desenterrar cadáveres, coisa que passou o resto da vida a fazer, em sentido mais ou menos figurado: nos últimos 30 anos, ele foi o homem a quem Hollywood telefonou quando teve problemas, todo o tipo de problemas (acusações de abuso sexual de menores, adultérios, overdoses, divórcios litigiosos, filhos ilegítimos, ligações perigosas, enfim: esqueletos no armário que podem fazer, mas principalmente desfazer, carreiras). Agora que foi condenado a 15 anos de cadeia por escutas ilegais e extorsão, toda a gente fala dele na terceira pessoa, como se não tivesse nada a ver com o assunto - até ele.
Se não existisse, Anthony Pellicano teria de ser inventado - por Hollywood. Em parte foi: Pellicano construiu a sua persona com materiais que foi buscar a toda uma grande tradição do cinema negro, e sobretudo a um mito fundador, O Padrinho (quando Hollywood telefonava, ficava a ouvir a banda sonora de Nino Rota até a chamada ser transferida para Anthony Pellicano).
Os métodos dele eram obscuros, mas foram usados por toda uma clientela perfeitamente mainstream. Não directamente: Michael Jackson contratou-o para se livrar das acusações de pedofilia, Tom Cruise contratou-o para se livrar de Nicole Kidman, Courtney Love contratou-o para se livrar de um ex-assistente, Chris Rock contratou-o para se livrar de uma mulher com quem teve sexo fora do casamento, Steven Seagal contratou-o para se livrar das suspeitas de ligações a uma família mafiosa de Staten Island, mas todos têm as mãos limpas porque quem tratou desses assuntos foram os advogados.
Uma pessoa invisível
Anthony Pellicano comia os escândalos de Hollywood ao pequeno-almoço, ao ponto de os fazer desaparecer sem deixar rasto: para todos os efeitos, era uma pessoa invisível. Deixou de ser quando as coisas começaram a correr mal e na semana passada, depois de um prolongado julgamento, soube que vai passar os próximos 15 anos na prisão, como num filme em que os maus são castigados.
Alguns dos maus: nenhum dos clientes que usaram os serviços pelos quais Pellicano foi condenado teve um processo em cima, nenhum dos polícias que lhe cederam, a troco de dinheiro, informações confidenciais foi afastado. "Se o Governo não planeia ir além de Pellicano, isto acaba por ser uma operação deprimente e primária que demonstra muita falta de ambição", disse ao "New York Times" John C. Coffee, especialista em crimes de colarinho branco na escola de Direito da Universidade de Columbia.
Nisso, a sentença do caso Pellicano foi um anti-clímax: não rolaram as cabeças que se chegou a imaginar que pudessem rolar, e a imprensa desinteressou-se. "Pellicano é o único responsável, essa é a verdade pura e dura. Ele só permitia que os outros soubessem aquilo que ele queria que soubessem. Era ele que tomava todas as decisões, que protegia todos os segredos, que protegia todos os clientes. Podia passar horas a tentar ludibriar-vos de uma maneira ou de outra, mas o sr. Pellicano deu-me ordens para não o fazer. E quando o sr. Pellicano manda, obedece-se", assumiu o próprio Pellicano (que dispensou um advogado de defesa) nas alegações finais do julgamento.
O sr. Pellicano também lhe deu ordens para não se arrepender de nada: "Fui um bocado descuidado, e lamento-o profundamente. Mas pedir desculpas? Não, assumo a responsabilidade por tudo o que fiz", disse, por telefone, a partir da prisão federal onde vai passar os próximos 15 anos.
Ninguém estava à espera que ele pedisse desculpas. Mas muita gente estava à espera que ele desse com a língua nos dentes e desenterrasse os segredos que andou a vida toda a guardar. É possível que esteja a guardar os seus ficheiros secretos para um livro - ou para um filme. Por enquanto, limita-se a dizer que quem o contratava sabia o que estava a comprar: "Quando um detective privado investiga uma pessoa, intromete-se na vida dela. As minhas práticas não são diferentes das dos outros - eu sou só melhor a fazer o que os outros fazem."
Melhor ao ponto de ter a fama (mas agora já não o proveito) de ser o private eye que conseguia tudo para os seus clientes. Tinha os seus agentes na imprensa (oferecia escândalos aos tablóides e depois oferecia-se às estrelas para evitar que os jornais os publicassem), nas telecomunicações, na polícia, e sabia gerir a informação que acumulava com a polivalência de um agente duplo: "Dizia aos clientes que eram da família e que na família dele ninguém tocava, mas esquecia-se de acrescentar: ninguém a não ser eu", explicou Kat Pellicano, a ex-mulher de Pellicano, que voltou a casar-se com ele recentemente, numa entrevista após a separação.
Era "o tipo de pessoa que ateia um incêndio e depois cobra dinheiro para apagá-lo", notou um ex-colaborador, Paul Barresi, ao jornal "Los Angeles Times". Só que desta vez queimou-se.
Perito em escutas
A sorte de Anthony Pellicano começou a mudar em 2002 quando uma jornalista do "Los Angeles Times" que estava a investigar as ligações perigosas do actor Steven Seagal encontrou o vidro do carro partido e um peixe morto com uma rosa na boca e um papel com a palavra "stop" no limpa-párabrisas. Anita M. Busch chamou a polícia e a polícia chegou a Pellicano.
Já tinha dado nas vistas em 1977, ainda em Chicago (onde nasceu, a 22 de Março de 1944), quando encontrou mais ou menos milagrosamente o saco com o cadáver de Mike Todd, ou aquilo que sobrava dele ("Na altura, houve quem achasse a espantosa descoberta de Pellicano demasiado espantosa, mas com o entusiasmo as dúvidas tornaram-se irrelevantes", conta a "Vanity Fair") e em 1982, já em Los Angeles, quando foi contratado pelo advogado do magnata John DeLorean para ajudar a desfazer uma acusação de tráfico de cocaína.
Era tão bom com as escutas telefónicas (muito possivelmente o maior especialista na matéria em todo o território dos EUA) que o próprio FBI chegou a pedir-lhe peritagens (e o Times, quando foi preciso averiguar a autenticidade de uma gravação que se dizia ser do Xá do Irão), e tornou-se um intocável, com escritório montado num arranha-céus do Sunset Boulevard e um exército de assistentes (as suas technogeeks) esculturais que quando não estavam a parasitar linhas telefónicas estavam a posar nuas para a "Maxim".
Agora que se tornou mais incómodo do que útil para Hollywood, Anthony Pellicano é só um entre os dez mil detectives privados registados na Califórnia, um estado onde a lavagem de roupa suja é particularmente lucrativa e em que a espionagem industrial se joga a um nível muito próximo do inimaginável. Tal como em 1977, quando apareceu pela primeira vez na televisão, continua com os pés na lama. A diferença é que agora - se quiser, quando quiser - pode arrastar Hollywood para a lama com ele.