2004

Foto

MÚSICA/INTERNACIONAL
Escolhas de Eurico Monchique, Fernando Magalhães, João Bonifácio, Kathleen Gomes, Miguel Francisco Cadete, Nuno Ferreira, Nuno Pacheco, Pedro Rios, Rui Portulez e Vítor Belanciano

1. DEVENDRA BANHART
REJOICING IN THE HANDS
Distri. MVM

Quantas canções existem nas canções da América? Simples: há a herança dos Apalaches, a música de origem índia, a reminiscente da Irlanda, a dança francesa do cajun, o gospel, o blues rural e preto, o blues urbano que foi desaguar na country dos brancos, baladas de morte, tudo. E um ponto abaixo de tudo (e muitos acima de muito) encontra-se uma voz que funde num só género a beleza que pariu a cinza da América. Da folk gótica de "A sight to behold" à música de coreto mestiça de "This beard is for Siobhán", é a América toda a fremir no vibrato de mr. Banhart. That's all folk, folks.

2. SPEKTRUM ENTER...
THE SPEKTRUM
Playhouse, distri. Ananana

Na música actual todos os estilos se contaminam. Não existem géneros puros, mas provavelmente nenhum outro disco personifi cou essa ideia de forma tão invulgar em 2004 como o álbum de estreia dos ingleses Spektrum, criadores de formas alienígenas inspiradas nas sonoridades mais relevantes dos últimos anos - funk digital, R&B contemporâneo, electrónica minimalista, estrutura de canção e pós-punk - num todo descarnado de um centro, como um livro em aberto, num disco sujo, geométrico, mutante, sensual e dançante.

3. TOM WAITS
REAL GONE
Anti, distri. Edel

Há um primitivo e há um homem de vanguarda em Waits e ambos estão "Real Gone", 20º álbum de um mutante que não tem parado de produzir música sem a qual não passamos. Composto por vocalizações cavernosas, percussões do inferno e baladas mórbidas - e, pela primeira vez, dispensando o amansar de um piano -, é mais um rasgo da estética híbrida de Waits, entre "blues", funk, música cubana, "spoken word" e canções na noite. Waits, esse velho (deliciosamente) louco, resumiu isto tudo como "funk cubista". Seja lá o que for, é muito bom.

4. CLOUDDEAD
TEN
Ninja Tune, distri, Ananana

Ao segundo álbum o mundo dos cLOUDDEAD permanence o mesmo, apenas com as peças mais arrumadas: hip-hop, gaiolas partidas e sujas, bicicletas que voam, pregadores alienados, polkas, cães mortos na beira de estrada, lésbicas gordas, torradeiras na banheira e sodomias a animais. Só aparentemente é que é livre a associação de ideias deste trio. Há uma ordem que preside à sobreposição de palavras e centenas de samples e sons alienígenas - o génio. Já foi a música do futuro, agora é a pop mais estimulante do momento. Um cometa.

5. !!!
LOUDEN UP NOW
Warp, distri. Symbiose

Em 2004 o mundo descobriu que as guitarras também faziam dançar com os Franz Ferdinand, mas foram os americanos !!! que levaram o propósito mais longe num álbum de estreia vibrante, marcado ritmos frenéticos, laivos de psicadelismo, ruído de guitarras e uma métrica obsessiva, numa música catártica e minimalista. Um ciclone onde parecem andar às voltas sobre si próprios, num vendaval catártico os Can, o balanço dos Liquid Liquid, a energia em bruto dos Sonic Youth ou o funk dos Chic.

6. VINICIUS CANTUÁRIA
HORSE AND FISH
Hannibal Records; distri: Edel

O Corcovado aprecia-se melhor a partir de Nova Iorque. E é por isso que Cantuária reinventa a música brasileira segundo a lei da beleza, esquecendo o que os olhos vêem para construir um mundo à parte. É um nova-iorquino no sentido arty que enforma as suas canções, mas é carioca o minimalismo sensual que as transforma. "Horse and Fish" é composto por peças de uma liberdade abundante, em que as atmosferas e as texturas se transformam em matéria-prima de uma musicalidade subtil e eivada de uma graciosidade naturalista, capazes de transformar a música numa poderosa máquina de viajar.

7. BRIAN WILSON
BRIAN WILSON PRESENTS SMILE
Elektra Nonesuch, distri. Warner Music

Custou mas foi. 38 anos decorridos sobre a sua concepção original, em 1966, "Smile", a obra-prima-que-não-chegou-a-sê-lo, renasce com pompa e circunstância, não como álbum dos Beach Boys mas como um disco a solo do génio Wilson. Esta "sinfonia adolescente para Deus" pode ser, como diz o seu autor, um "sonho tornado realidade", mas é difícil vê-la como conclusão do disco perdido original. É um outro sorriso, algures entre a ideia original e uma obra contemporânea. O melhor é apreciá-lo como um híbrido dos tempos modernos e deixar de tentar responder à questão: "Does 'Smile' really exist?".

8. CARL HANCOCK RUX
APHOTECARY RX
Giant Step, distri. Última

Um labiríntico mapa (blues, hip-hop, soul, jazz, funk, spoken-word) que funciona como montagem de atracções envolvidas por uma voz grave que canta como se interrogasse a sua própria condição e aquilo que se passa em seu redor. Entre o recitar e o cantar, imagina-se um Tom Waits afro-americano, um Nick Cave em versão gospel ou uma Ursula Rucker existencialista. O segundo álbum do americano Carl Hancock Rux é um corpo sincrético amadurecido.

9. MOODYMANN
BLACK MAHOGANI
Peacefrog, distri. Symbiose

O americano Kenny Dixon Jr, mais conhecido por Moodymann, esteve imparável. A meio do ano editou "Black Mahogani" e passados alguns meses a segunda parte, mantendo o mesmo nível qualitativo, reinterpretando tecnologicamente as músicas negras com alusões ao jazz, soul, "disco" e funk. A sua música é enigmática, nocturna, introspectiva, feita de longas e inebriantes construções rítmicas inspiradas num house desacelarado e em construções complexas do jazz, onde sons e palavras são o espaço propício para a fantasia e especulação estética.

10. ADRIANA CALCANHOTO
ADRIANA PARTIMPIM
BMG

De um projecto falhado, retomado anos depois, Adriana Calcanhotto fez um disco irresistível, encantador, onde todas as canções soam com absoluta simplicidade mas também com um "savoir faire" que é tudo menos "infantil". Transfi gurada em Partimpim, mergulhou na infância e fez um disco sem tempo nem idade, que demorará muito tempo a desvanecer-se na nossa memória. Para ouvir e reouvir, com alegria e paixão.

11. DIZZEE RASCAL
SHOWTIME
XL; distri: MVM

Quando gravou "Showtime", Dizzee Rascal já não era o rapazinho de 19 anos que espantou os apreciadores de música urbana como seu disco de estreia, "Boy in da Corner". O mundo mudou, até para Rascal, ainda que a sua música permaneça um aglomerado de referências enraizadas na música da Jamaica. Mas agora há visitas guiadas a sonoridades orientais, percussões africanas, electro à moda dos anos 80, electrónica à roda do século XXI, dancehall, vaudeville marado ou linhas de baixo pilhadas ao jungle mais minimal, trejeitos de garage e insinuações próprias do rap. A música popular, ainda na particular perspectiva de Dylan Mills está a saque. É a isto que chamam grime?

12. KANYE WEST
THE COLLEGE DROPOUT
Roc-A-Fella, distri. Universal

2004 foi todo "wild, wild, West", graças à estreia do "rapper" e produtor Kanye West. Com ele o hip-hop voltou a ser colorido com soul. Na sua música distinguimos as silhuetas melódicas da soul, os elementos vocais "gospel", o hip-hop mais confortável e fl uído e algumas incursões pelas batidas marciais como em Timbaland. O resultado é uma música hip-hop emocional com orquestrações clássicas, harmonias de sempre repescadas na melhor soul de Stevie Wonder ou Marvin Gaye e uma enorme versatilidade lírica.

13. LHASA
THE LIVING ROAD
Audiogramme, distri. Warner

Depois do culto alcançado com o maravilhoso disco de estreia, Lhasa de Sela resolveu desaparecer, ir trabalhar para um circo e voltar cinco anos depois - e de novo com grandes canções. E sem Yves Desroisiers Lhasa soa ainda mais a Lhasa, a guitarra perde o trono e em seu lugar surgem violinos, percussões à Tom Waits, acordeões, a canção francesa com sífi lis vem de braço dado com as fronteiras latinas e a faca na liga de uma sonoridade sombria. E de novo o vitral gótico da voz refl ecte, como dantes, o desamparo da carne no seu caminho para a noite - imensa.

14. LORETTA LYNN
VAN LEAR ROSE
Interscope, distri. Universal

Foi em boa hora que Loretta Lynn se juntou a Jack White dos White Stripes para gravar "Van Lear Rose". Os dois assentaram num estúdio montado na casa de um amigo de Jack, em East Nashville, onde gravaram 14 temas em 10 dias e duas sessões, acompanhados pelo baixista Jack Lawrence e o baterista Patrick Keeler. O resultado: um rol de temas autobiográfi cos entre a country e o indie rock, do melhor que se ouviu em 2004. É o regresso da "fi lha do mineiro" à ribalta.

15. METRÔ
DÉJÀ VU
Difference, distri. EMIValentim de Carvalho

O regresso de um trio que fez furor no Brasil nos anos 80 (Dany+Virginie- +Yann=Metrô) fez-se pela porta grande, com um disco "literalmente caseiro", como lhe chamaram, mas cheio de memórias sem nostalgia, banhadas pela mais depurada contemporaneidade. Mais maduros do que nos primórdios mas também mais clarividentes, os Metrô assinaram uma obra onde a simplicidade, feita elegância, é uma lufada de ar fresco.

16. HANDSOME BOY MODELING SCHOOL
WHITE PEOPLE
Atlantic; distri: Farol

Handsome Boy Modeling School é bem capaz de ser considerado pelos seus próprios protagonistas - Prince Paul e Dan the Automator - como o recreio em que tudo lhes é permitido. É para esse lugar que convidam os seus amigos de folguedo (uma extensa lista de músicos na moda ou nem por isso) e é também aí que se aplicam na tarefa de devolver ao mundo uma farsa que nunca chega a ser grotesca nem bizarra mas que é povoada do mais fi no humor. Se o hip-hop fosse bel-canto, "White People" seria a "Ópera do Malandro".

17. DEATH IN VEGAS
SATAN'S CIRCUS
Drone, distri. Symbiose

Ignorados num ano em que a reinou a exuberância hedonista, e presos no irónico lugar de banda incapaz de lançar um disco abaixo do muito bom, os Death in Vegas editaram um CD tão prenhe de ideias e caminhos sinuosos quanto simples no produto fi nal e ao ouvido. Electrónico e orgânico, dos anos 70 e do século XXII, parte do electro punk para agarrar o dub, o minimal, o funk descarnado e fazer temas que, na sua secura e avidez, dizem muito dos mundos em que vivemos. Medo e desejo, morte e renascimento - tudo isto existe, tudo isto é belo e triste, tudo isto é o circo satânico dos Death in Vegas.

18. I-WOLF
BIRDY MEET THE BABYLONIANS
Kline Records, distri. Ultima

O segundo álbum de originais de I-Wolf, confirma Wolfgang Schogel como um dos mais interessantes artistas da actualidade. A lógica de composição refl ecte o paradigma da abertura estilística. Não há fórmulas, não há preconceitos. Há uma massa sonora em que todos os estímulos são bem vindos e ordenados segundo uma lógica que privilegia a atitude do rock, o poder transformista da electrónica, a criatividade da música da Jamaica e a fusão contorcionista a todo o terreno. Tudo pode acontecer. E a verdade é que tudo acontece, entre as cinzas de Madchester e a vibração dancehall de Germaica.

19. FLAT EARTH SOCIETY
ISMS
Ipecac, distri. Sabotage

Os FES são uma "big band" belga liderada pelo clarinetista Peter Vermeersch e "Isms" uma antologia de composições de álbuns anteriores. A música refl ecte "nuances" que vão de apontamentos suspensos nas lâminas de um vibrafone, a explosões furiosas onde os 20 elementos da banda se degladiam para estilhaçar as fronteiras do rock e do jazz. As "merrie melodies" de Carl Stalling colidem com o fi lme negro de Barry Adamson, o "free" cósmico de Sun Ra aplaca-se nos rendilhados de Daniel Schell. Sempre nas margens da ebulição. Como Mike Patton gosta.

20. ANIMAL COLLECTIVE
SUNG TONGS
Fat Cat, distri. Ananana

A psicadelia descobre a pop, dão as mãos e dançam na pradaria. "Sung Tongs" é a esquizofrenia vertida para melodias solarengas, vozes enlaçadas (os Beach Boys entregues aos cogumelos), palmas ("Who could win a rabbit" é um dos singles do ano) ou em folk estratosférica e cristalina como "The softest voice". "Sung Tongs" é talvez o primeiro álbum da nova música exploratória norte-americana a desenhar a ponte entre a experimentação e o afago pop clássico. Eis uma apaixonante visão do mundo, entre a pop e o resto das músicas, desbravadas ou por explorar.

 

 

MÚSICA/NACIONAL 
Escolhas de Eurico Monchique, Fernando Magalhães, João Bonifácio, Miguel Francisco Cadete, Nuno Pacheco, Pedro Rios, Rui Portulez e Vítor Belanciano

1. JOSÉ MÁRIO BRANCO
RESISTIR É VENCER
EMI-Valentim de Carvalho

O que poderia ter sido um disco de fragmentos, resultante de experiências musicais de diversas épocas, impôs-se como um álbum coeso, forte, luminoso, reconhecedor do passado mas empenhado sobretudo em adiantar-se ao futuro. José Mário Branco assinou uma das suas obras musicalmente maiores e mais maduras, prova do seu papel de relevo na história e nos caminhos da música portuguesa.

2. RODRIGO LEÃO
CINEMA
Sony

Rodrigo Leão encontrou o caminho que melhor lhe serve. De volta às canções - tal como fazia na Sétima Legião ou nos Madredeus -, apresentou desta feita uma viagem feita de imagens em movimento capazes de nos transportar até Paris, Buenos Aires, aos Balcãs ou ao Rio sem nunca ser necessário abandonar Lisboa. Sendo um disco pop, "Cinema" não cede um mílimetro à pop globalizada e radiofónica, preferindo perder-se em sonoridades ora exóticas ora cinemáticas. A melancolia é o único fio condutor.

3. KALAF + TYPE
A FUGA...
Meifumado, distri. Sabotage

É um álbum a duas vozes, do músico-produtor Zé Nando Pimenta (Type) e do poeta-cantor Kalaf, capazes de fi ltrar a realidade sónica à sua volta de forma singular, esteja ela ancorada em matérias do jazz, do funk, do hip-hop ou da electrónica. É um disco denso e nocturno, onde as palavras lúcidas e irónicas dialogam com as variações do "groove", é um disco livre, que pensa e respira como poucos.

4. HIPNÓTICA
RECONCILIATION
ed. e distri. Metrónono

A música dos Hipnótica ganhou nova dimensão com a produção de Wolfgang Schlogel. Ao terceiro álbum de originais, o lado negro e urbano da banda ganhou nova luz e modernidade, elegeu o jazz como inspiração e deixou para trás os fantasmas dos 80s. Entre deambulações electro-acústicas pautadas pela liberdade criativa e fl uidez sonora, os Hipnotica conseguiram vislumbrar o apelo da pop e simultaneamente conceber um disco denso e vibrante.

5. HUMANOS
HUMANOS
EMI-VC

A mais feliz homenagem a Variações, de entre as que lhe foram sendo feitas nos últimos vinte anos, encontra-se em "Humanos", disco que recupera canções que ele deixara apenas esboçadas. Porque aqui se soube respeitar o programa que ele próprio tinha defi nido para a sua música - o cliché "entre a Sé de Braga e Nova Iorque" - mas sobretudo porque se dá viva voz a algumas das melhores letras escritas em português para música pop. Camané, Manuela Azevedo e David Fonseca provaram que têm Variações na voz.

6. PLUTO
BOM DIA
Universal

Mais ou cedo ou mais tarde, o talento de Manel Cruz - um dos melhores escritores de canções da nova música portuguesa - havia de reencarnar. Só isso faz de "Bom Dia" um disco assinalável, mas há mais: uma nova atitude rock, centrada na guitarra de Peixe a piscar o olho aos Radiohead, funk rock a lembrar "Cão!" em "Sexo mono" ou "Lição de adição", a pop de algodão de "Convite" ou a agressividade de "Prisão". "Bom Dia" não mata a sede de um novo "O Monstro Precisa de Amigos", marco incontornável da música portuguesa dos anos 90, mas entretém e delicia os órfãos dos Ornatos e novos fãs.

7. QUINTETO TATI
EXÍLIO
Transformadores

Eis um álbum que consegue um efeito de que poucos se podem orgulhar: é cantado em português e parece tão ajustada essa opção que é difícil imaginar outra. É um disco da palavra. Da que se escreve - e J.P. Simões fá-lo como poucos - e da que se canta. As palavras estão possuídas pela necessária ambiguidade de quem expressa as cambiantes das emoções. A música embala-nos com motivos de bossa nova, rumba, valsa, bolero, jazzismos, embala-nos com uma doçura desencantada.

8. WRAY GUNN
ECLESIASTES 1:11
NorteSul; distri: EMI-VC

Os Wray Gunn sabem de cor e salteado a história do rock'n'roll tal como é contada pela população afro-americana. Mais do que isso: viram todos os filmes de "blaxploitation", consumiram a discografi a da editora Fat Possum e leram uma versão --ainda que em "reader's digest" - da Bíblia. Para quem sabe que a intensidade primordial do rock não é mero espalhafato de guitarras eléctricas em distorção mas um interminável diálogo entre o Deus e o Diabo, "Eclesiastes 1:11" é um bálsamo para as agruras da alma.

9. GOMO
BEST OF GOMO
Edi. e distri. Universal

Música pop naquilo que ela tem de mais reconfortante. Evocar e reconstruir sentimentos complexos em três frases musicais efi cientes. Uma melodia viciante, um ritmo que respira o ar à sua volta, uma guitarra e uma voz. Aplicar a simplicidade de gestos na exposição de ideias e ter presença de espírito para partilhar o sentido de fantasia da realidade, eis o segredo de Paulo Gouveia, Gomo, que no seu álbum de estreia criou canções lúdicas para guitarra, voz e computador avariado.

10. SAMUEL JERÓNIMO
REDRA NDRA ENDRE DE FASE
Ed. e distri.Thisco

Uma pedrada no charco na electrónica portuguesa. "Tour de force" de música minimal onde se combinam equações de piano, marimbas inspiradas nas orquestras gamelão, electrónica pontilhística e tratamento de computador. O ponto de partida é a metamorfose do som, conceito inerente a toda a escola minimalista. Atrás das melodias principais, os duplos harmónicos criam uma rede de melodias secundárias que incessantemente se substituem umas às outras num efeito de eternidade suspensa. Entre a erudição conceptualista e uma atitude "progressiva", é um objecto único.

 

 

CINEMA 
Escolhas de Kathleen Gomes, Luís Miguel Oliveira, Mário Jorge Torres e Vasco Câmara

1. LOST IN TRANSLATION
SOFIA COPPOLA

Se "As Virgens Suicidas" (1999) é um dos mais belos primeiros fi lmes do cinema americano dos últimos anos, "Lost in Translation" é o mais belo segundo fi lme do cinema americano dos últimos anos. O cinema de Sofia Coppola parece ter fixado um objecto de especialização: essas epifanias silenciosas que nos perseguem a vida inteira. "Lost in Translation" também é fi lme para perseguir-nos por muito tempo, feito do mesmo estofo dos clássicos (não por acaso, falou-se de "Breve Encontro", "Casablanca"...). É a coreografia subtil e impressionista de um par improvável - Bill Murray e Scarlett Johanson, um actor "has been" e uma rapariga à procura de rumo - em Tóquio, tão "lost in space" quanto "lost in translation". Um homem, uma rapariga, duas possibilidades? Olhem que não.

2. SER E TER
NICOLAS PHILIBERT

Num ano em que se "redescobriu" (em termos comerciais) o documentário, "Ser e Ter" foi um ponto alto no panorama de estreias. O fi lme de Philibert foi uma meditação sobre o tempo e sobre a infância arrancada ao concreto de um lugar e de umas quantas pessoas. Não esqueceremos depressa nem o professor nem, sobretudo, aqueles miúdos a aprenderem que tudo é "passagem" e que estar vivo é ir deixando coisas para trás.

3. KILL BILL 2
QUENTIN TARANTINO

E assim o épico se concluiu, ou talvez não - porque o que o segundo volume confi rmou é que o díptico é, afi nal, um fi lme ou que há várias hipóteses de um fi lme à espera de serem libertadas. Vimos esta versão em duas partes, que pareciam tão diferentes mas eram tão iguais, repetindo motivos com uma sensualidade à fl or da pele. Não é hábito no voraz Tarantino uma vontade assim de se dispor à educação sensorial do nosso olhar.

4. THE BROWN BUNNY
VINCENT GALLO

Chegou com ecos de "film à scandale", mas o que aterrou foi um ovni. É um filme que faz muito com muito pouco, e essa foi a sua provocação. "Road movie" solitário por onde desfi la a paisagem da América, Gallo deambula em busca de uma ausência (e o encontro será carnal, mas não se tem a certeza de não ser um fantasma). Narcísico, sim, mas o narcisismo é levado até ao risco de auto-destruição (é a nossa hipótese de comoção).

5. A VILA
M. NIGHT SHYAMALAN

É o mais belo filme de M. Night Shymalan (isto não é consensual). Não há, hoje, muitos realizadores americanos a fi lmarem como Shyamalan (isto é consensual). Parábola sobre o medo e sobre a América na forma de uma comunidade puritana desligada do mundo, bastaria a forma como o realizador carrega cada plano de signifi cado (e de languidez) para nos envolver.

6. 2046
WONG KAR-WAI

A sequela não-sequela de "In the Mood for Love". É um fi lme em que se espantam fantasmas: o de uma mulher, no caso da personagem masculina, o do filme anterior, no caso do realizador. Era preciso responder a "In the Mood for Love", e Kar-wai respondeu com um "not in the mood for love", mais carnal e menos metafísico. E mais imperfeito, pela sua natureza digressiva. Mas ainda assim ele consegue ser o mais fulgurante dos cineastas.

7. NOITE ESCURA
JOÃO CANIJO

A "pièce de resistance" de Canijo, que leu os sinais de uma tragédia clássica numa casa de alterne. Os actores estiveram em estado de graça (foi mais perturbante do que isso: foi da ordem da transfi guração) e o cineasta esteve à altura da sua arte - só a forma como criou, e assim fez existir para nós, espectadores, um espaço, um labirinto, a partir de sons e vozes já tornaria este fi lme memorável.

8. MÁ EDUCAÇÃO
PEDRO ALMODÓVAR

Poucos terão entendido, depois do consenso de "Tudo sobre a Minha Mãe" e "Fala com Ela", este regresso de Almodóvar a uma matriz mais vampírica do seu cinema. E não foi um voltar atrás, foi ir em frente para escapar ao abraço caloroso que deram os dois anteriores fi lmes. Obra ácida, "Má Educação" não fez o mínimo esforço para redimir quem quer que fosse. Esse contacto com a escuridão é a memória que deixa este filme.

9. O AGENTE TRIPLO
ERIC ROHMER

Aos 84 anos, o mais velho da geração da "nouvelle vague", trouxe-nos uma obra-prima de ironia. Um fi lme onde o diálogo é preponderante mas que trabalha as palavras como um emaranhado perverso onde tudo se anula. Rohmer sempre foi um mestre a fi lmar a palavra como manipulação da realidade - e aqui, com as ressonâncias político-históricas envolvidas (II Guerra), o mecanismo é conduzido ao ponto-limite do seu cepticismo.

10. WANDA
BARBARA LODEN

Um fantasma dos anos 70, apresentou-se em 2004 para dizer "presente". Foi longa a travessia, durou décadas, até ser reconhecido esta obra única, e único fi lme, de Barbara Loden, cuja singularidade fi cou esquecida logo no seu tempo, porque não se coadunava com a iconografi a dos que faziam a revolução em Hollywood. Não obrigará a revisionismos, mas a verdade é que como história de uma mulher sem existência não mais nos largou.

 

 

DANÇA
Escolhas de Lucinda Canelas e Daniel Tércio

A Música de Keersmaeker

Anne Teresa de Keersmaeker está muito longe de ser uma estranha nos palcos portugueses. Mas o programa que apresentou em Outubro em Lisboa, Porto, Évora e Viseu foi especial. Para além da qualidade das obras apresentadas - "Once" e "Bitches Brew/Tacoma Narrows" (sobretudo esta última) -, há a sublinhar a inclusão dos palcos nacionais na digressão mundial que celebra os 20 anos da sua companhia, a Rosas (1982- 2002). Em "Once", solo intimista ao som de Joan Baez, uma das vozes que marcou a sua infância (o disco é "Joan Baez in Concert Part 2"), Keersmaeker regressa ao palco para dançar. "Bitches Brew/Tacoma Narrows" presta homenagem a outro dos gigantes da música do século XX, Miles Davis. Nesta peça para 13 bailarinos - tantos quantos os músicos que participaram no mítico "Bitches Brew", que Miles gravou em Nova Iorque em 1969 - explora pela primeira vez a improvisação em pleno espectáculo.

Os Fantasmas de Bill T. Jones

O coreógrafo norte-americano Bill T. Jones também aproveitou o 20º aniversário da sua companhia para exorcizar fantasmas. "The Phantom Project", nome da digressão mundial da Bill T. Jones/Arnie Zane Dance Company, trouxe a Lisboa uma das suas criações mais recentes ("Mercy 10 X 8 on a Circle") e a remontagem de uma das obras paradigmáticas do seu reportório: "Still/Here Looking On". Recusandose a fazer do programa comemorativo um "best of" do seu trabalho coreográfi co - que durante 17 anos foi partilhado com Arnie Zane -, Jones ofereceu ao público uma autêntica "recoreografi a", demonstrando uma imensa capacidade para reinventar a sua linguagem, cada vez mais depurada e formalista, e uma enorme generosidade para com os excelentes bailarinos da companhia. Exercício de memória doloroso, mas notável.

O Mediterrâneo em Al Kantara

Apesar das dificuldades orçamentais que já deixaram pelo caminho uma edição do melhor festival de dança do país, a Associação Danças na Cidade não cruzou os braços e decidiu voltar-se para uma das suas esferas de eleição - o Mediterrâneo. O resultado foi o Al Kantara, festival de artes performativas que começou a quatro dias das eleições presidenciais norte-americanas que haveriam de reeleger George W. Bush e que assumiu um programa político bem defi nido - provar, a partir da criação dos países do sul da Europa, que a convivência entre culturas e religiões distintas (o islamismo foi um dos principais temas) é fundamental para a diversidade artística e uma garantia de sobrevivência. Um programa que incluía dança, performance e dois debates levaram um Mediterrâneo disposto a contrariar a sua condição periférica à Casa d'Os Dias da Água.

Os Novos Belgas

Em Junho, Lisboa pode reconfi rmar o talento de Sidi Larbi Cherkaoui, um coreógrafo belga de 28 anos que pertence a um dos mais inquietantes colectivos da actualidade - Les Ballets Contemporains de la Belgique. Sem fugir por completo ao universo de uma das suas principais referências artísticas - Alain Platel, a imagem de marca dos Ballets C. de la B. - e assumindo a sua admiração pelo trabalho de criadores como Meg Stuart, Cherkaoui dá forma a um novo universo. "Foi" ("Fé"), a peça que apresentou em Lisboa, aliou música do século XIV, a alguns dos mitos e crenças da cultura ocidental, passando pela crítica política (Bush foi o principal alvo) e social. Uma "ópera medievo-contemporânea" que deu provas da qualidade da nova geração belga.

Inovação Gulbenkian

Paulo Ribeiro chegou ao Ballet Gulbenkian em 2003, apresentando um programa ambicioso que pretendia renovar a mais internacional das companhias de dança portuguesas. Mas foi em 2004, depois de no ano passado nos ter apresentado duas magnífi cas peças de Marie Chouinard, que o director artístico tornou ainda mais claro o seu desejo de inovação. Paulo Ribeiro não quer o Ballet Gulbenkian preso aos coreógrafos de sempre - quer fazer da companhia um território de risco em que possam entrar criadores como Gilles Jobin ("Delicado"). A intenção de recuperar os Estúdios Coreográfi cos - ainda por concretizar devido ao calendário de digressões nacionais e internacionais - é outro dos dados a reter.

 

 

TEATRO
Escolhas de Inês Nadais e Joana Gorjão Henriques com Paulo Trindade, Rita Martins e Rui Monteiro

Os Stan Deram-Nos Oxigénio

Em "Questionism", Frank Vercruyssen (dos flamengos Stan) esteve duas horas no palco do Teatro Maria Matos, em Lisboa, a fazer-nos perguntas e a contar histórias para depois nos atirar com uma colecção impressionante de números de guerra numa crítica explícita aos EUA. Devemo-lhe a descoberta de Max Frisch e dos seus diários de 1966-71 e um espectáculo que nos falou ao ouvido e nos fez rir, confrontou, afrontou e nos deixou respirar.

Crónica Proletária Da "Fabbrica"

Ascanio Celestini deu vida a uma carta, a substância de "Fabbrica", interpretando-o como um monólogo demencial e criando em palco uma crónica quase épica sobre a ascensão e queda da cultura operária. Esta peça, hipnótica e prodigiosa, apresentada no Festival de Almada no programa "Teatros que Vêm de Itália", foi um dos melhores exemplos do dinamismo de uma dramaturgia em crescente afi rmação.

Fomos Oblomovistas

No PoNTI fomos oblomovistas. Por causa de "Oblomov", espectáculo sublime do encenador romeno Alexandru Tocilescu (e a personagem mais maravilhosamente reaccionária da literatura russa, sentada num baloiço que nos há-de fi car na memória), mas também por causa de "mPalermu", esse outro espectáculo sobre a indolência (Sicília, desta vez, em Emma Dante como em Lampedusa: tudo a mudar para tudo fi car na mesma). É raro a inércia ser tão teatro.

O Efeito Vassiliev

O russo Anatoli Vassiliev foi o mito de serviço no último PoNTI. A sua "Ilíada" (em formato hipertexto, com remissão para o Novo Testamento) não foi consensual, foi só impressionante: os actores deixaram o texto de Homero em carne viva, como se as palavras tivessem deixado de ser palavras para passarem a ser qualquer coisa da ordem do tumulto, e inventaram uma gramática gestual próxima do wushu que colocou a acção muito para lá do texto.

O Demiurgo Pippo Delbono

O ano começou com três espectáculos inesquecíveis do encenador e actor italiano Pippo Delbono no Centro Cultural de Belém, em Lisboa: "Raiva", "Guerra" e "Silêncio". Com uma companhia formada por actores e bailarinos profi ssionais e por actores com defi ciências mentais e físicas - para quem o encenador olha com uma dignidade comovente -, Pippo Delbono cria obras poéticas únicas: misto de teatro e dança, da simplicidade artesanal e do popular, da rua e das origens do teatro, com uma força e humanidade raras vezes vista em palco.

O "Site-Specific" de "Na Esquina de uma Rua"

Primeiro espectáculo de Mónica Calle no novo espaço, no coração do Cais de Sodré. Mais do que uma adaptação do espectáculo apresentado no Centro Cultural de Belém - "Um Dia Virá" - "Esquina de uma Rua" era um "site-specifi c". À obra de Samuel Beckett ("À Espera de Godot"), Calle acrescentou textos de Kantor e de Rui Chafes, reduziu e alterou o seu monólogo inicial, sublinhou o seu papel de encenadora-demiurga e dirigiu os actores como um todo orgânico.

A Cornucópia Fez "Teatro Rasca"

Não deixa de ser curioso que uma companhia com mais de 30 anos, (re)conhecida por fazer um teatro que não segue modas, tenha criado uma comédia desbragada a partir de um texto com 300 anos: "Esopaida ou Vida de Esopo", de António José da Silva. "Gags", vernáculo a irromper de um português arcaico, homens a mostrar as partes íntimas à maluca: assim se soltaram os corpos num espectáculo que esticou o burlesco até ao "kitsch", sem medo de ser "malcriado".

Corpos "Para Além do Tejo"

Foi um objecto único, delicado, de uma simplicidade e rigor invulgares. Miguel Seabra dirigiu em "Para Além do Tejo" (espectáculo integrado no Festival Percursos) um grupo de actores que se entregou e transformou. Nos corpos deles (Adriano Carvalho, Carla Galvão, Gonçalo Waddington, Mónica Garnel e Romeu Costa) esteve inscrito o trabalho de preparação em técnica de máscara, teatro gestual e taiji qigong e a investigação sobre a especificidade da cultura alentejana.

O Carnaval dos Presniakov

Universo "pop grotesco", desenhos animados inspirados na série "South Park", teatro popular, tudo em crescendo num universo onde entrava tanto o suburbano das chanatas de piscina como o "fashion" dos restaurantes japoneses. Jorge Silva Melo pôs tudo isto num palco giratório onde apareciam e desapareciam actores da boca de cena sublinhando o lado perdido das personagens e o lado de farsa carnavalesca de "No Papel da Vítima" dos russos Irmãos Presniakov.

"Ilhas": Viver nas Traseiras

Entrava-se por um alçapão e havia vida inteligente lá dentro: "Ilhas", o ovni que José Carretas montou num minúsculo contentor instalado na gigantesca Central Eléctrica do Freixo, foi mais experiência sociológica de observação do que espectáculo. Visita de estudo a um dos universos mais intramuros do Porto, construiu com justeza a claustrofobia das vidas que se vivem nas traseiras. Exemplar, como projecto artístico e como serviço público.

Sugerir correcção
Comentar