Por quem estou disposto a morrer?

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Quando Steve McQueen, nascido em 1969, tinha 11 anos, três acontecimentos foram para ele um “despertar": o Tottenham ganhou a Taça de Inglaterra, houve motins em Brixton, bairro de Londres, e na televisão estava sempre a aparecer uma fotografia de Bobby Sands com um número debaixo do nome. “Todos os dias, o número mudava, mostrando há quanto tempo ele estava em greve de fome”, recorda o imponente McQueen.

Ao fim de 66 dias sem comer, Bobby Sands, 27 anos, membro do Exército Republicano Irlandês (IRA), condenado desde 1977 a uma pena de 14 anos por posse de armas de fogo, morria na prisão de Maze, em Belfast, em Maio de 1981, liderando a luta dos prisioneiros republicanos nas prisões de Sua Majestade para não estarem subordinados às normais regras das prisões (tudo começara em 1976, com o “protesto do cobertor” - os prisioneiros recusaram-se a vestir o uniforme da prisão -, e em 1978 a luta escalou para a recusa em lavarem-se, “dirty protest” que os fez besuntar as celas com os excrementos).

A morte desencadeou “riots” na Irlanda do Norte, e onda de simpatia pela causa. Para o londrino McQueen, que em 1999 receberia, como artista plástico, o Prémio Turner, esse foi um momento formativo. “Tornou-me uma pessoa que questiona o que o rodeia. É uma daquelas coisas... alguém para ser ouvido teve de deixar de comer. Bobby Sands pensou que morrer à fome mudaria as coisas, que isso iria ajudá-lo, e ao seu grupo, a conseguir os seus objectivos.” A história ficou com ele até à idade adulta. Depois das escolas de arte de Londres e da Tisch School of Arts de Nova Iorque, depois de ter imposto as suas instalações na Tate, no Guggenheim, no Pompidou, apaixonou-se pela ideia de tornar a história de Bobby Sands num filme - ele que (são alguns dos seus trabalhos plásticos mais significativos) é autor de “Carib's Leap” e “Western Deep” (2002), obras atravessadas pela violência exercida sobre o humano, ou “Illuminer”, vídeo no qual se observa, num quarto hotel, o artista deitado numa cama, o corpo iluminado pelo ecrã de um televisor onde passa uma reportagem sobre os exércitos britânico e americano no Afeganistão. O filme a partir da história de

Bobby Sands chama-se “Hunger”, valeu-lhe no Festival de Cannes o prémio para as primeiras-obras, a Câmara de Ouro. O artista plástico é cineasta. “O cinema era o meio certo para esta história”, diz-nos, “mas não queria que ‘Hunger’ fosse um filme sobre Bobby Sands. Quis questionar a moralidade do que ele fez e filmar isso de tal modo que fôssemos forçados a interrogarmo-nos sobre até onde estamos dispostos a ir. Algumas pessoas acham que ele foi um mártir, outras que era um terrorista. Quis atirar uma pergunta aos espectadores de modo a que eles reflectissem sobre a História e as escolhas que fizemos no passado. Por quem ou pelo quê estamos dispostos a morrer?”

McQueen começou a trabalhar em “Hunger” em 2003, quando foi nomeado “Official War Artist to Iraq”, encomenda do Imperial War Museum da qual resultou, após visita ao Iraque, “Queen and Country”, colecção de selos onde se vêem os rostos dos soldados britânicos mortos. (Há uma discussão em curso sobre se os selos devem ou não entrar em circulação.) Viajou até Belfast com o co-argumentista Enda Walsh, para conhecer quem esteve envolvido nos acontecimentos de Maze. “Foi cansativo e doloroso. Quando regressámos a Londres, não falámos um com o outro durante três semanas, havia tanto para assimilar.”

Na rodagem, a maior parte da equipa e o elenco secundário foi constituído por quem teve ligações com presos ou guardas prisionais. A escolha do intérprete de Bobby Sands recaiu num actor nascido na Alemanha há 31 anos, mas criado na Irlanda, Michael Fassbender. A produção teve de parar durante dois meses para Fassbender perder 16 quilos, com um médico a controlar diariamente o processo de emagrecimento. “O Michael fê-lo porque era necessário. Voltou [do emagrecimento] como um pequeno Buda. Havia uma claridade nele...” E continua: “Esse encontro entre as pessoas ligadas aos acontecimentos e os actores foi como se o passado e o presente se tivessem chocado, ali no ‘plateau’. Foi maravilhoso”.

“Choque” é palavra certa para descrever a experiência de ver “Hunger”. Se dissermos: Irlanda do Norte, IRA, pensa-se num realismo politicamente empenhado, de denúncia. Mas dessa forma não se abarca o filme. Com McQueen, o realismo é uma questão de corpos, pele, olhados à lupa, tão de perto que se torna abstracção. O ecrã passa a ser uma hipótese de reflexão cheio de ecos de hoje. Por mais marcantes que tenham sido, para o adolescente McQueen, as notícias sobre Bobby Sands, o filme é uma experiência “ao vivo” entre espectador e ecrã. A colisão dos corpos é uma experiência sensorial tão estonteante que isso nos atira, atordoados, para um ponto zero a partir do qual estamos abertos à reflexão.

Como conta McQueen ao Ípsilon, as imagens do filme tiveram a arte como inspiração - e nomeia Velázquez e Goya. “Esses artistas tiveram de atrair as pessoas com imagens, imagens horríveis. Não se tratava de fazer o Belo. Era horrível e repugnante, mas só assim conseguimos ficar com a imagem. Só assim conseguimos que as pessoas se concentrem.”

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