Apetecia-me falar dos desenhos únicos, da extraordinária inovação dos textos teóricos, que tentavam fixar até ao limite do impossível a criação desmesurada do artista, da sua aproximação e afastamento a Freud, do Ulisses de Joyce, que ele elegeu como Bíblia do seu novo cinema, e de muitos, muitos etcéteras. Mas pediram-me um texto pessoal. Coragem, porque eu lhe devo, pelo menos, três saltos catastróficos (boas coisas, porque mexem o mundo) na minha vida.
Primeiro movimento - Sessão clandestina no Cineclube de Coimbra em 1968, O Couraçado Potemkine. Rebentou-me a cabeça e as convicções, a mim, católico e reaccionário. Movimentos colectivos. Comissão da cantina. É no estômago que as revoluções começam. E sentimo-nos todos pequenos imitadores de heróis de Eisenstein, com uma missão a cumprir. Assim começou a crise de 69 e a minha pequena e ridícula contribuição para a mudança do mundo. Segundo movimento - Escola de Cinema, finais de 1974. Como todas as coisas normais, também as aulas foram destruídas. Os alunos ao poder. Trouxemos Jacques Aumont e passámos 15 dias consecutivos de manhã à noite com A Linha Geral ou O Velho e o Novo.
É na montagem que tudo existe, é lá que tudo se decide. Na revista M, que eu fiz com uns amigos, está publicado o resultado dessa aprendizagem. Ninguém foi tão longe como Eisenstein na afirmação daquela certeza (talvez, anos depois, mas de um modo muito mais pálido, outro grande artista falou e praticou isso - Godard), chegando mesmo a tornar físico, palpável e material o "E", a coisa não filmada e a maior de todas.
Um plano "E" o outro. A composição polifónica: a abstracção plástica, o acontecimento objectivo e a reacção subjectiva no mesmo plano. E depois, desenvolvida na montagem sobretonal, vinda claramente da música, onde as cordas da narrativa se separam e se juntam tocando todos os sentidos e todos os neurónios. Sacrifícios e redenções, oceanos de crueldade e purificação do povo, metáforas arrasadoras logo desligadas num mar da redenção metonímica. As associações que afinal são o cinema.
Terceiro movimento - Tempos Difíceis, 1987. Sem o texto maravilhoso de Eisenstein Dickens, Griffith e Eu, nunca teria feito aquele filme como o fiz. Retirar toda a carne e a "lamechice" do romance para chegar ao osso e tornar a matéria da estrutura visível. Foi Eisenstein que me ensinou que afinal o inventor da arte cinematográfica era Dickens, anunciando-a muito antes de chegar a técnica que a permitiu. Se um capítulo acabava num evidente plano geral, o seguinte começava claramente na descrição de um grande plano. Até era possível encontrar ao longo do romance a figura mais mágica e produtiva, a elipse cinematográfica.
Lembrem-se da figura de Ivan, hierática, vertical e terrível, o ideograma eisensteiniano vindo de um pictograma da arte japonesa (um pássaro no céu) ocupando o terço direito do enquadramento e nos outros dois terços, vindo do horizonte plano, um mar de povo contorcendo-se em curvas. A turbulência que ameaça tudo pôr em causa. Não sentem o cérebro inflamado, as pernas a tremer e um aperto no coração? Não tenham medo, é só a matéria física das ideias.