A fama precede Peter Kember, conhecido no mundo da pop como Sonic Boom. Foram os Spacemen 3, o mote "taking drugs to make music to take drugs to" e as entrevistas elogiando as virtudes artísticas da heroína. Referimos-nos, claro, aos anos 1980, quando a banda que fundou com Jason Pierce, monstro psicadélico de drones de guitarra entorpecentes, de transe induzido com ferramentas rock'n'roll, se tornou fenómeno de culto. Depois disso, quando acabaram os Spacemen 3 e nasceram os Spectrum, cresceu a ideia do eremita encafuado num quarto na pequena cidade de Rugby - Jason Pierce saiu para Londres com os Spiritualized, ele ficou -, que ressurge de tempos a tempos com novo projecto "avantgarde" para apenas indefectíveis ouvirem.
Esta é a imagem que se criou em volta de Sonic Boom: guitarrista alucinado, perdido entre sintetizadores analógicos, discos dos Suicide e sonhos opiáceos. Precisamente o oposto daquele que falou com o Ípsilon desde a sua casa em Rugby. O Peter Kember que encontrámos é conversador de voz calma e ponderada, é um homem que gosta de discutir e falar longamente de música. Da sua e da dos outros, começando pelas referências incontornáveis e acabando nos fascínios recentes. Até pode ter algo de eremita - afinal, afirmanos gostar de criar em isolamento -, mas a lenda da sua louca misantropia é manifestamente exagerada.
Sonic Boom estrear-se-á em Portugal nos próximos dias 26 e 27, com concertos no Museu do Chiado, em Lisboa, e no Theatro Circo, em Braga. Nas últimas actuações, vem tocando com uma banda de quatro elementos. Em Portugal, estará sozinho. Diz-nos que trará guitarras, sintetizadores, órgãos, caixa de ritmos, sampler e tudo o mais que for necessário para criar música como uma "one man band" futurista. Será, pela estreia, pela sua relevância no desenvolvimento da música popular urbana recente, um acontecimento.
Droga e religiosidade
Há um momento na conversa em que Kember faz um rápido flashback até aos seus primeiros anos com uma guitarra. Regressado ao presente, confessa que pouco mudou: "Quando descobri que a música simples de que gostava funcionava precisamente por ser tão minimal, arranjei um emprego." O impulso, portanto, é o mesmo. Ilustremo-lo com uma história. Atirámos muito cuidadosamente o tema "droga e criatividade" para cima de mesa - e logo percebemos que o cuidado havia sido desnecessário. Peter Kember conta-nos então: "No final dos anos 50, deram LSD a 50 padres católicos. Os seus contextos sociais e idades eram completamente diferentes e, no final, concordaram apenas numa coisa. Aquela tinha sido a mais religiosa experiência das suas vidas. Não podemos ignorar este tipo de evidência." Faz depois uma ressalva ("não digo que sirva para toda a gente"), e conclui: "Enquanto músico, funciono como uma antena canalizando estados de espírito e sensações e [as drogas] têm tornado a minha antena mais sensível."
Não se deve ler a declaração anterior de forma simplista. Há que ouvir a música de Sonic Boom. A que fez com os Spacemen 3 e com os Spectrum, rock'n'roll em ascensão espiralada, incrivelmente orgânico e hipnótico. A que gravou no projecto Experimental Audio Research, ensemble de improvisação e experimentação de estúdio que o reuniu a músicos como Kevin Shields, dos My Bloody Valentine, ou ao artista multimédia alemão Thomas Köner. "Conseguir envolver os outros no momento criativo, fazê-los sentir aquilo que sentimos quando primeiro chegamos à canção" é, confessa, o seu maior objectivo. Isso tem tanto de ambição pop, coisa recente, quando de ritual muito antigo, coisa ancestral.
Na música de Sonic Boom reúnem-se numa só aquelas duas expectativas perante a música. É uma abordagem artística e a procura de algo essencial. Não é o início nem o fim de nada: "Se, nos Spacemen 3, fomos rápidos a creditar como referências os Suicide, os Silver Apples ou John Lee Hooker, isso aconteceu porque os sentíamos parte muito importante das nossas vidas, aconteceu porque queríamos pertencer ao 'continuum' de que eles faziam parte." "O facto", considera, "é que agora somos um elo na cadeia, não o fim dela" - pouco depois elenca os MGMT e os Brian Jonestown Massacre como o elo que se segue e destaca Panda Bear como um dos seus músicos preferidos. "A música dele enriquece a minha vida."
O seu último álbum, editado em Maio, intitula-se "Indian Giver" e foi gravado com um lendário produtor de Memphis, Jim Dickinson - trabalhou com toda a gente, de Screamin' Jay Hawkins aos Big Star, dos Rolling Stones aos Replacements. Nele, a música tem a cadência hipnótica que é imagem de marca de Sonic Boom, construída com linhas de sintetizador hipnóticas e caixa de ritmos minimalista. Contudo, com theremins e harmónicas pantanosas, com vozes ecoando ao vento (que também ouvimos), sugere-se uma mutação. Esta música que nunca muda ganha novas paisagens - igual a si mesma, sofre uma metamorfose.
Há obviamente um propósito para o novo que se ouve: se este é o álbum country dos Spectrum, country tingido a negro, Sonic Boom tratou de lhe capturar a aura de mistério e assombração. "A diferença não é necessariamente boa e a novidade não é válida por si só. Percebo isso bastante bem, tendo crescido com o pós-punk que era todo baseado na novidade e na diferença. A verdade é que, olhando para a maioria das bandas do período, percebe-se que eram realmente novas e diferentes, imensamente originais, mas muitas vezes miseráveis."
Interessa-lhe procurar o novo e adora transformar-se em cientista sónico. O objectivo, porém, está claramente definido: utilizar tecnologia "muito complexa" para daí extrair algo "muito simples, no limiar do espiritual".
Quando afirma que a repetição é o elemento mais presente em toda a sua música, já percebemos que a "culpa" não é dos Silver Apples, dos Suicide, do blues "tão hipnótico, tão aparentemente fácil mas tão complexo de John Lee Hooker". Ouçamo-lo: "Tocas um riff uma vez e é apenas um riff, toca-lo mil vezes e é uma textura em desenvolvimento. Junta outros elementos em seu redor e a música ganha potencialidades mágicas."
É essa qualidade mágica que Sonic Boom persegue, ponderada e infatigavelmente, em todos os locais onde julga poder encontrá-la - na música popular dos bluesman, na erudita de John Cage, no rock'n'roll assombrado dos 13th Floor Elevators, nos sons das ruas de Rugby ou nos que extrai de um sintetizador descoberto recentemente.
Vinte e cinco anos depois de iniciar o percurso com os Spacemen 3, o círculo ainda não se completou. "Não sei se é a demanda de uma vida", despede-se. "Mas é a de um músico."