Já não há heróis

A premissa de "O Corpo da Mentira" não podia ser mais simples: os EUA estão a perder a "guerra contra o terror" porque continuam a não perceber que isto não é o "quero posso e mando", e não ouvem o suficiente o pessoal que está no terreno e tem a verdadeira noção do que se está ali a passar. Depois, é só "embrulhar" a premissa num revestimento de caleidoscópio de espionagem que vai de Sheffield a Amã passando por Washington e Incirlik e fazê-la passar por entretenimento. Táctica que não resultou o ano passado com "O Reino", de Peter Berg, cujos retornos de bilheteira foram modestos; e parece voltar a não ter resultado com o filme de Scott, que esbarrou no desinteresse das audiências americanas para com filmes que ficcionalizem os dilemas da política externa de Bush.

Em abono da verdade, o "embrulho" de caleidoscópio de espionagem não disfarça grandemente a vocação do filme como thriller político, adaptando o romance do jornalista do "Washington Post" David Ignatius sobre um agente da CIA que procura manobrar por entre as areias movediças de alianças de conveniência ao tentar fazer sair da toca um sucedâneo de Bin Laden. Trocando por miúdos: "Syriana" com mais acção e mais tecnologia, mas sem conseguir esquivar-se às armadilhas que essa definição coloca.

Ora é um tecno-thriller à imagem do "Inimigo Público" do mano Tony, ora uma meditação melancólica que tem algo de Le Carré no modo como pinta a espionagem com cores soturnas, ora um objecto que levanta questões políticas prementes relativas ao que é demasiado entendido como "imperialismo americano" (sobretudo na cena do almoço entre Leonardo di Caprio, Golshifteh Farahani e Lubna Azabal e na presença de Russell Crowe como o untuoso superior hierárquico de Di Caprio, com um sotaque do Sul dos EUA a sublinhar o seu alinhamento com uma administração "de resultados").

Pelo meio disto tudo, "O Corpo da Mentira" nunca consegue criar uma personalidade própria; é um híbrido funcional mas anónimo, que Scott filma com o seu habitual cuidado mas ao qual não consegue imprimir a urgência que a história exige (o mundo real não é, definitivamente, o habitat natural do realizador inglês).

Mas é apreciável ver um filme que, por uma vez, não toma os espectadores por estúpidos nem lhes dá o herói linear que o marketing dá a entender.

Sugerir correcção
Comentar