Na entrevista que concedeu ao Ipsilon a propósito da estreia portuguesa de "Ensaio sobre a Cegueira", Fernando Meirelles fala das duas reacções opostas que tem visto no público: há quem goste muito e fique emocionalmente afectado, há quem não se consiga envolver e reaja friamente. Por muito que nos apetecesse colocar-nos no primeiro campo - e haveria muitas razões para isso, desde o envolvimento da divina Julianne Moore às expectativas devidas à inteligência de que o realizador brasileiro fez prova na sua adaptação do "Fiel Jardineiro" de John Le Carré - a verdade é que "Ensaio sobre a Cegueira" nos deixa no segundo. Reconhecendo a fidelidade narrativa e espiritual ao romance de José Saramago (que, aliás, se mostrou significativamente satisfeito com a adaptação), mas incapazes de nos relacionarmos com ele para lá de uma admiração distanciada.
Manda a verdade que se diga: o que Meirelles e o argumentista Don McKellar (igualmente actor, no papel do ladrão) fizeram da prosa de Saramago é trabalho sério, bem pensado e melhor executado (sobretudo ao nível da desorientação e perda de âncoras criadas pelo extraordinário trabalho de ambientação, enquadramento e fotografia). Mas isso não faz de "Ensaio sobre a Cegueira" (apesar de infinitamente superior à canhestra adaptação da "Jangada de Pedra" por George Sluizer) um grande filme.
Por um lado, a alegoria de uma civilização reduzida ao primitivismo por uma misteriosa cegueira epidémica (luminosa em vez de escura, indetectável contudo real) não sobrevive à opção hiper-estilizada de Meirelles em concentrar a acção no interior do pavilhão de quarentena. Ao fazê-lo, o cineasta neutraliza a carga apocalíptica da metáfora, que apenas surge sempre que o filme sai para fora daquela prisão improvisada ou que há contacto com gente de fora (a arrepiante cena em que Moore e Mark Ruffalo estão na mira de soldados apenas por quererem pedir medicamentos).
Assim que, no "terceiro acto", a acção se transfere para a metrópole abandonada, povoada por cegos que vagueiam pelas ruas, "Ensaio sobre a Cegueira" ganha (mesmo que por pouco tempo) o embalo perturbante que lhe escapou anteriormente, consegue sugerir a angústia indizível de um mundo que acabou (que, por exemplo, "Eu Sou a Lenda" de Francis Lawrence conseguia instalar rapidamente).
Por outro lado, estas personagens sem nome (respeitando a opção original do romance) têm mais de arquétipos do que de gente de carne e osso, comportam-se mais como experiências de laboratório do que como seres humanos. Nunca sentimos (apesar dos esforços hercúleos de Julianne Moore a fazer uma autêntica Nossa Senhora dos Aflitos) que o filme traduza a sua alegoria em termos genuinamente humanos e imprevisíveis, impossibilitando a identificação do espectador. O que faz de "Ensaio Sobre a Cegueira" uma adaptação honesta mas fria, que admiramos sem dúvida pela inteligência com que respeita a sua fonte, mas que nunca nos consegue emocionar verdadeiramente, que nunca consegue transcender a força conceptual da sua alegoria central para a tornar numa experiência humana.