Ricardo Pais: “A minha vontade já é de me afastar há muito tempo”
Em entrevista ao PÚBLICO e à Rádio Nova, Ricardo Pais explica que, apesar de ter passado a ser uma Entidade Pública Empresarial (EPE), o TNSJ ainda não sabe quanto dinheiro pode gastar até ao final do ano – mas já sabe que, em 2009, terá um “tecto orçamental baixíssimo”, o que o levou a cancelar as suas próximas encenações. A administração pública, lamenta, percebe “mal o que é o serviço público de teatro”, e a euforia com as indústrias criativas está a levar os decisores a “deixar coisas por fazer” num país com problemas graves de subdesenvolvimento cultural.
Porque os tectos orçamentais que nos foram dados como referência dois dias antes do lançamento da temporada são baixíssimos. As temporadas foram sempre um desejo e pareciam uma inevitabilidade, mas nunca conseguimos anunciar uma programação a longo prazo. Precisamente por ser o primeiro ano em que nos inscrevíamos nessa coisa pomposa e aparentemente eficaz a que se chama sector empresarial do Estado, eu esperava que fosse finalmente a temporada a sério e tinha posto nela um gosto todo particular, desenvolvendo vias de trabalho que eram muito importantes, algumas das quais deixámos cair completamente. Mas não há segredo nenhum quanto às coisas que já estão confirmadas.
Quais são?
Esta esquizofrenia da acumulação da direcção artística e da presidência do conselho de administração – que só é esquizofrenia porque a administração pública funciona tão mal e percebe tão mal o que é o serviço público de teatro – leva a que tenhamos dores com a programação. Nomeadamente porque o TNSJ sempre deu uma imagem muito optimista e nunca quis parecer pobre como é: apesar de irmos dizendo que o orçamento decresce 14 ou 15 por cento regularmente desde 1995 ninguém acredita, apesar de irmos dizendo que temos quatro edifícios à nossa responsabilidade, dos quais três são monumentos nacionais, ninguém parece ligar muita importância, porque em princípio o teatro vai. Mas voltando a 2009, eu comecei por cancelar as duas encenações que tinha – o que é contranatura porque a presente lei orgânica, apesar de relativamente analfabeta do ponto de vista jurídico-administrativo, autoriza o director artístico a fazer duas encenações por ano. Cancelei uma coisa sobre o Frederico Valério – era um projecto caro que eu não quereria deixar como ónus ao meu futuro colega em caso de me afastar do TNSJ.
É essa a sua vontade?
A minha vontade já é de me afastar há muito tempo. Em Maio avisei o ministro da Cultura que tinha condições de me reformar a partir de Janeiro. Isto não tem nada que ver com a comissão de serviço, eu poderia continuar a dirigir o TNSJ – mas tenho problemas pessoais e familiares a resolver e nos últimos tempos sofri desconsiderações imensas (que não vou enumerar para não ser alvo de algum despacho mais ignóbil como alguns que temos lido ultimamente no Diário da República), pelo que pedi ao ministro que considerasse que, a partir de Janeiro, eu me presto a ajudar na transição.
Que resposta teve?
Houve compreensão, embora me fosse pedido que ficasse até mais tarde.
Até ao final do mandato?
O final do mandato coincide com as eleições, é uma data muito sensível. Vou pedir a minha reforma no dia 2 de Janeiro, e a seguir veremos. Tive uma reunião com o ministro há pouco tempo, em que foram enunciados finalmente os principais problemas com que nos debatíamos – e que constavam de pelo menos 150 documentos [enviados] para as duas tutelas, Finanças e Cultura. Aguardo a todo o momento uma carta do senhor ministro em que ele gentilmente se comprometerá a vir ao encontro de uma série de pequenas condições que eram indispensáveis a que continuássemos agora. Para a frente, vamos a ver.
Mas continua pelo menos como director artístico, ou não continua de todo?
Eu nunca seria director artístico se não fosse presidente do Conselho de Administração. Isso para mim é absolutamente líquido e estava vertido na própria proposta de redacção da lei orgânica que fizemos aos anteriores governantes.
À dra. Isabel Pires de Lima?
E ao dr. Mário Vieira de Carvalho, sim. Os anteriores governantes, em quem se tem dado tanta pancada, muita dela muito merecida – se calhar até é de menos – não deixaram de ser governantes do engº José Sócrates. Tudo o que eu possa dizer sobre o que quer que sejam os problemas do TNSJ e sobre a utopia absoluta do estabelecimento de bases sólidas para a criação teatral estatal enquanto serviço público tem esse pressuposto: não estamos apenas a falar deste ministro que, na sua flamboyance, elegância e verbo, parece e é uma pessoa muitíssimo civilizada, estamos a falar do Governo de maioria absoluta de José Sócrates e da política cultural deste Governo. Sobre isso não me vou pronunciar agora: estou em funções, falarei quando chegar a devida altura.
A passagem do TNSJ a EPE não resolveu os problemas?
A rotina burocrática e da gestão dos dinheiros é completamente diferente, mas o grande salto em frente teria sido – e isso vamos ver se temos ou não – o Governo confiar-nos uma previsão orçamental, com todas as irregularidades que neste momento podem surgir, dada a crise que está aí. O facto de uma EPE nesta altura do ano não saber ainda se vai ou não ter o milhão e 500 mil euros que lhe faltam para acabar 2008 obriga-nos a perguntar para que é que existe um sector empresarial do Estado
Já sabe quanto terá para gastar em 2009?
O que nos foi dito até agora é completamente informal, mas é bastante menos do que o que tivemos este ano – ou que talvez venhamos a ter este ano.
Tem estado frequentemente com o ministro da Cultura?
Ele veio visitar-nos uma vez, cortesmente, e depois eu tive três reuniões com ele em Lisboa, mas as relações podem ser óptimas sem a gente se ver.
E são óptimas?
Depende daquilo a que chama relações.
Partilham as mesmas ideias em relação à missão do teatro?
Nunca percebi propriamente isso, porque sempre ouvi falar, por exemplo, da política da língua sem nenhuma menção do teatro.
O TNSJ não é um dos agentes da política da língua que é a prioridade do ministro?
O ministro sabe que estamos a preparar uma estadia no Brasil, em Junho, da qual já foi parte activa. A importância que foi dada a Fernando Pessoa pelo Turismo Infinito permitiu-nos fazer permuta com um espectáculo de Antunes Filho, que virá ao Porto. Não se pode dizer que a governação cultural se tenha alheado disso, mas o que isso significa depois em termos de meios, e se é ou não usado como factor de propaganda deste Governo, já é outra história. Para já, sei muitíssimo mais do futuro do Magalhães do que do futuro do Turismo Infinito.
E quando sair do TNSJ?
Um dos projectos da minha vida neste momento é contribuir para que se clarifique o acesso às direcções dos teatros nacionais e dos organismos de Estado que gerem a cultura. Não se janta aqui e se convida uma pessoa para director de um teatro nacional, nem se anda à procura no mercado a ver quem é que está disponível, porque ninguém sabe fazer este lugar.
Tem medo da sucessão?
Não, já me aconteceram coisas piores: a Agustina Bessa-Luís sucedeu-me no D. Maria II, não tenho medo de nada. Mas acho que isto devia ser feito como se faz na maioria dos países civilizados da Europa, por um concurso limitado a cinco ou seis criadores-programadores. É assim que se pode chegar finalmente à transparência democrática.
Como é que viu a exoneração de Carlos Fragateiro do D. Maria II, que também já dirigiu?
Acho que o Governo conseguiu estar à altura do próprio Carlos Fragateiro na maneira como o exonerou.
“61 mil espectadores é um número astronómico”O que vamos poder ver afinal em 2009 no S. João?
O Mercador de Veneza regressa em Janeiro, e depois temos o Rui Horta com os Micro Audio Waves e, como peça de resistência, os Tambores na Noite do Bertolt Brecht, na encenação do Nuno Carinhas. No Teatro Carlos Alberto (TeCA) vamos ter uma espécie de musical sobre o Porto que eu pedi ao Ricardo Alves e à Palmilha Dentada – A Cidade dos que Partem, chamaram-lhe eles – e a vinda do Teatro da Rainha com uma peça do György Tábori, Weisman e o Cara-Vermelha, e a Estação Incerta, do Pirandello. Mas também vale a pena dizer que tínhamos um programa fantástico de noites brancas para o TeCA que foi completamente posto de lado, e outra coisa maravilhosa em que íamos explorar as virtualidades da androginia vocal, de Georgette Dee a Little Jimmy Scott, e que também foi à vida. E depois, até ver, deixa de se fazer o trabalho com os mais novos em continuação do festival 30 por Noite, que era a via que eu considerava mais importante, mais criativa e mais fundadora.
Também teremos de passar este ano sem o PoNTI. Custou-lhe muito cancelar o festival?
Eu já queria tê-lo cancelado desde o tempo em que a [ministra da Cultura] Maria João Bustorff nos deixou um défice brutal com um PoNTI que nunca pagou. Mas custou-me imenso, é uma marca fortíssima da casa, e este era um grande PoNTI. Vinga a minha ideia, económica mas sem o impacto de um festival, de ir recebendo com regularidade colegas nossos, alargando cada vez mais a nossa rede de contactos para fora da União dos Teatros da Europa.
Como tem evoluído o público do TNSJ?
Eu tinha feito a jura de não dizer um número sequer, porque sistematicamente são publicados números astronómicos: diz-se que há não sei quantos milhões de espectadores, mas o que há é festas em Bragança e em Serralves e DJings no [Centro Cultural] Vila Flor e na Casa da Música. Esses números não interessam. Os números que interessam significam fidelização de públicos a démarches artísticas particulares, porque o fim para que esta casa existe – ao contrário das fundações que são resorts, franchisings, agências de viagens e outras coisas mais interessantes até, sem ofensa para Serralves e a Casa da Música – é a qualidade do teatro que fazemos e o reconhecimento que o público faz disso. Portanto quando digo que esperamos 61 mil espectadores este ano, é um número astronómico.
“Elisa Ferreira seria uma belíssima hipótese para a cultura no Porto” Ali do seu gabinete na Praça da Batalha, como é que vê a cultura no Porto? Tivemos a Capital Europeia da Cultura, a Praça da Batalha sofreu alterações...
Sofreu, sofreu. As praças sofrem que se fartam, aliás, como se vê com os Aliados.
Mudou alguma coisa para melhor?
Não podia ter mudado para melhor: o lúmpen é o mesmo, os problemas sociais são os mesmos, os tráficos são os mesmos. Quando muito há uns rapazes da Al-Qaeda a serem presos lá atrás, o que torna a coisa muito mais excitante, mas não é por ali que a cidade vai mudar.
A dra. Isabel Alves Costa, quando esteve connosco, falava-nos da rede de programadores que em tempos existiu...
Era uma rede de pessoas que jantavam com o Manuel Carrilho quando ele vinha cá e discutiam as coisas em termos muitíssimo sérios.
Sente falta disso?
Sinto falta do Manuel Carrilho, porque hoje já é possível que algumas dessas pessoas afirmem nos jornais que nunca se identificaram com poder nenhum, quando se não houvesse identificação com o poder tal qual ele era exercido nessa altura nada do que está hoje aqui estaria feito.
E com a Câmara Municipal do Porto como é que se dá?
Temos boas relações de trabalho através da PortoLazer, dentro do que é possível. Nunca estiveram propriamente mal, o único grande momento de [tensão] remete-nos para a Culturporto e para a forma como ela própria se deixou queimar. É a minha eterníssima questão: o PS está sempre a fazer a política que permite que a seguir o PSD venha fazer terra queimada das principais conquistas.
Era possível outra política cultural a nível municipal?
O problema das políticas culturais é internacionalmente grave: em França é gravíssimo, os paradigmas estão mesmo a cair pelo descaramento e pela aisance de alguns políticos de facto fracturantes como o Sarkozy, para dar apenas um exemplo do que é uma espécie de Pedro Santana Lopes a sério. A protecção às artes e os sistemas integrados com os quais se pôde contar para desenvolver um trabalho continuado, tudo isso está a ficar muito perigoso, até porque quando o dinheiro falta é à cultura que vai faltar. Aqui a questão põe-se de uma maneira muito particular. Em países que estão ainda em vias de desenvolvimento cultural como nós, a next big thing é sempre aquilo que esquece o que ficou por fazer, e é por isso que eu embirro tanto com os clusters, com as indústrias criativas e com os chamados programadores modernos, porque estão sempre à procura da última novidade para fazer de conta que a gente vai ser como São Francisco. A criação teatral portuguesa está ainda a crescer – apoiá-la devia ser uma missão nacional, aliás como o cinema e todas as artes periféricas que não podem viver do mercado. Isto tinha que ser feito como parte de um projecto cultural para o país: não tenho visto esse projecto nestes últimos anos, não o tenho visto seguramente nestas governações.
O que preferia: um presidente Rui Rio ou uma presidente Elisa Ferreira?
Não pensei ainda muito bem nisso, mas sou um admirador da Elisa Ferreira e acho que se ela estiver disposta a vir trabalhar para o Porto terá sérias possibilidades de ganhar. Eu não apoio o PS, apesar de ter votado a minha vida toda PS até às últimas eleições legislativas, e o PS nunca me apoiou a mim, bem pelo contrário – mas seria uma belíssima hipótese para a cultura no Porto.