Genericamente, a questão com Reygadas, 37 anos, é a forma como nada parece contê-lo perante os corpos dos seus actores-que-não-são-actores, objectivando-os com a violência de um vampiro. Mas uma coisa estranha aconteceu, há um ano, à saída da projecção do seu último filme, "Luz Silenciosa", no Festival de Cannes (nos festivais ouvem-se em primeira mão os ranger de dentes...): ninguém se escandalizara com sexo, nem com o zoo cruel, e em vez disso atiravam-se ao ar maravilhas sobre um nascer do Sol e sobre um pôr do Sol. É assim que abre e fecha "Luz Silenciosa": sem truques digitais, são as estrelas da noite e é a estrela do dia a aparecerem como numa fábula Disney; é o som da terra a amanhecer, é o som do crepúsculo, e é de embasbacar. Por isso, a primeira coisa que perguntámos a Carlos Reygdas, que esteve ao telefone com o Ípsilon desde o México, foi: alguma coisa mudou o provocador? Tinha resposta pronta, como advogado que foi. br/>"Não, é uma continuidade, como julgo que se pode ver. É a mesma pessoa que filma. Nos meus filmes há sempre amor, violência e há sempre luz. O que acontece é que, às vezes, as coisas estão mais enterradas e é preciso haver fendas para a luz passar. Desta vez, não quis falar de corpos, das pessoas como matéria. Todas as pessoas são interessantes, umas são mais fáceis de "agarrar" do que outras, temos é que olhar mais profundamente. Desta vez, interessei-me por um grupo que habita um lugar em que tudo parece mais claro".
Tornou-se crente, é isso? Ele assegura que já antes o era. "Não é uma questão de fé, é uma questão de sentimento. Sinto que uma outra dimensão existe. E sinto isso nas coisas. Nos outros filmes isso também estava presente, mas de forma menos paradigmática. Neste filme talvez esteja lá de forma mais evidente... a luz, as orações. É só mais difícil de ver a luz no outros filmes; mas ela está lá."
Este grupo, de que fala Reygadas, que lhe permitiu encontrar a luz de forma mais paradigmática, é uma comunidade religiosa de Menonitas que habita na região de Chihuahua, norte do México. Há-os mais radicais do que outros na forma como rejeitam o progresso e vivem de acordo com os "standards" do século XVI, quando a doutrina protestante foi codificada pelo holandês Menno Simons (1496-1561). Do norte da Europa iniciariam um périplo de séculos que os levou até à Rússia e ao continente americano. Há-os mais moderados, aceitando o uso de carros e da medicina tradicional (não a Internet, nem o telefone), como os Menonitas que Reygadas rondou durante três anos e meio para ganhar a sua confiança. O que não era evidente: a reprodução da imagem - pintura, fotografia, cinema - é proibida, por exemplo. Mas o realizador explica que no Protestantismo a decisão individual é mais importante do que a comunidade, e tratou de "encontrar as pessoas certas" que, entre o trabalho nas quintas, se dispuseram a incluir no seu quotidiano, "de forma muito orgânica", a rodagem da história de Johan, casado, pai de família, que, em contradição com a lei de Deus e dos homens, se apaixona por outra mulher. Foi tão natural, conta - apesar da história de adultério - que o seu "actor principal", Cornelio Wall Fehr/Joahn, "até ficou com vontade de ser actor em Hollywood, se isso fosse possível". "Na verdade, os Menonitas em si não me interessam", diz-nos Reygadas - coisa que não nos surpreende. "Interessam-me algumas características deles, o facto de falarem uma língua neutra [um dialecto alemão], o facto de não terem classes sociais...", o facto, enfim, de poderem constituir uma tela em branco. Como se Reygadas tivesse encontrado nessa comunidade - ele que odeia actores, ele que detesta o teatro e a construção de personagens - um modelo de abstracção de que tem andado à procura e pelo qual foi até à violentação nos outros filmes.
"Para mim os actores são corpos que veiculam ideias. Por isso, em "Batalla en el Cielo" interessava-me apenas a exterioridade. Em "Luz Silenciosa" houve uma pequena alteração de método. Não deixei as pessoas apenas "serem", "estarem", quis que elas também "sentissem". Assim tornaram-se indivíduos, deixaram de ser apenas modelos. Ou seja, enquanto nos meus outros filmes os corpos serviram para exprimir ideias exteriores, filosóficas ou sociais, este é um filme sobre sentimentos. O sentimento de estar confuso, o sofrimento... Quis fazer um filme sobre sentimentos."
Há, por estes dias, em que "Luz Silenciosa" faz a sua estreia nos mercados internacionais, artigos nos jornais e revistas a identificarem um milagre. Este: há um filme de Carlos Reygadas que, afinal, nos desarma por algo mais do que pelo seu vampirismo (se bem que, em relação ao vampirismo, Carlos seja claro: "Não se pode ser moralista, deve-se aceitar que o que quer que fazemos tem sempre consequências. Os limites? A franqueza e honestidade com quem se trabalha. Trabalho com pessoas adultas e inteligentes que sabem o que estão a fazer. É uma hipocrisia colocar as coisas assim: "É um conjunto de idiotas manipulados por um realizador"").
Mas filma-se mesmo um milagre nas cenas finais de "Luz Silenciosa", e isso pôs toda a gente a falar na "Palavra", de Carl Theodor Dreyer - outra das coisas de que também acusam Reygadas é a de fazer com cada filme um "pastiche" das suas afinidades electivas. "Luz Silenciosa" seria o "seu" Dreyer, como "Ondas de Paixão" foi o Dreyer de Lars von Trier. Reygadas deve estar farto de ouvir isso (ele gosta de Dreyer, não é essa a questão...), porque assim que mencionamos esse santo nome não espera pelo fim da frase: "Ainda bem que fala disso. Adoro "A Palavra", é um dos melhores filmes de sempre. Mas são filmes diferentes, o meu e o de Dreyer: o de Dreyer fala da fé em sentido tradicional, é um filme sobre a existência de Deus; o meu é um filme sobre a vida das coisas, um filme em que tudo está vivo, seja um nascer do Sol, sejam os conflitos individuais, é um filme sobre a dor de estar vivo. Se não fosse a comunidade protestante, rural, ninguém falaria de Dreyer."
Um filme "em que tudo está vivo", sim. Talvez seja essa disponibilidade que gostámos de descobrir num cineasta tão inclinado pelas naturezas mortas. E gostámos mesmo que não soubéssemos que tínhamos gostado: as resistências em relação ao cinema de Reygadas podem funcionar como filtro que o tempo talvez se encarregue de fazer vacilar. Que ninguém se iluda, no entanto: pode ter havido conversões, mas houve ódios antigos que permaneceram. E não só nos países anglo-saxónicos, tão susceptíveis em relação ao "sexo", também em França, país que, para o bem e para o mal, construiu o nome de Reygadas. Nesse campo, diz, as reacções são "como a poesia, são individuais" e não nacionais. Há no México quem goste dos seus filmes, garante, mesmo se a ideia generalizada é que os mexicanos não se gostam de rever nas imagens deste cinema. Em contraponto, há em França quem o odeie, "como aquela revista horrível "Les Inrockuptibles", que mesmo sem ver o meu filme já estava a dizer mal". Eis onde ele se revê: nos filmes do tailandês Apichatpong Weerasethakul, do francês Bruno Dumont, do iraniano Abbas Kiarostami.
Eis do que ele se orgulha: do "laço inquebrável" que mantém com os seus "actores", "qualquer coisa de paternal", tudo muito "terno", nada "confrontacional".
Eis o que ele envia: "saudações" a Pedro Costa e a Manoel de Oliveira, "total master" pela sua "simplicidade".