E as tatuagens?
O projecto de lei do deputado do PS Renato Sampaio não inclui tatuagens, mas a prática suscita interrogações. O médico dermatologista Lima Duque, da Sociedade Portuguesa de Dermatologia e Venereologia, trabalha com processos de remover tatuagens há mais de dez anos. “Tatuar é um risco desde o momento que se faz”, diz o especialista.
Fazer uma tatuagem pode ser um perigo de saúde pública, uma vez a pessoa em questão pode ter uma doença mais tarde e não vai atribui-la à tatuagem. Outra questão é que existem “vírus que resistem à esterilização”, explica Lima Duque, que admite existirem tatuadores cada vez mais conscientes que usam material descartável e esterilizado.
O dermatologista destaca a “falta de legislação” que existe no país sobre os pigmentos usados nas tatuagens. “Há tintas cancerígenas à base de metais pesados e há tatuagens multicoloridas em que são usadas tintas de automóveis”, sublinha. Os pigmentos ficam no corpo para toda a vida, mesmo se a tatuagem for removida.
No que toca ao desenvolvimento de cancro de pele, “não há um risco directo”. “O que pode acontecer é a tatuagem ser feita em locais onde existem sinais e depois torna-se difícil monitorar o desenvolvimento de outros sinais e não os identificar por estarem no meio da tatuagem”, explica o especialista. As infecções virais são as principais doenças que a tatuagem pode desenvolver. “Hepatite e sida são as mais raras”, sendo as mais frequentes as “infecções cutâneas no processo de cicatrização ou alergias aos pigmentos”, refere.
O dermatologista afirma que uma pessoa que faça uma tatuagem acaba por se arrepender. “Há estatísticas norte-americanas que mostram que 60 por cento das pessoas que fizeram tatuagem arrependeram-se”.
A remoção das tatuagens não é um processo fácil e pode deixar cicatrizes. Mesmo assim, as técnicas para retirar tatuagens estão a evoluir sendo possível recorrer ao laser e não apenas à intervenção cirúrgica.
Alice Barcellos
Os “piercings” não são um problema de saúde pública, garantem médicos e “body piercers”
Alguns especialistas referem que a colocação de um “piercing” poderá causar problemas, dependendo da área onde é colocado. No entanto afirmam que, desde que os furos sejam feitos com os materiais adequados, por profissionais com formação, não existindo por parte do indivíduo qualquer tipo de incompatibilidade física, a sua saúde não é posta em causa. “Até porque o ‘piercing’ não é uma coisa recente, é um ritual com milhares de anos, há muito que faz parte da civilização humana”, afirma o dermatologista António Picoto, presidente da Associação Portuguesa do cancro cutâneo.
Se o projecto de lei for para a frente, Portugal será um dos países da União Europeia com medidas mais proibitivas nesta área. Em Espanha, França e Inglaterra, se um menor quiser fazer um piercing basta que tenha uma autorização dos pais. Sujeito a discussão pública, surgiu a dúvida: trata-se de prevenção da saúde pública ou limitação das liberdades individuais?
O “piercing” na língua e nos órgãos genitaisAs zonas que poderão oferecer maiores problemas à colocação de um “piercing” são as áreas mucosas, como a língua ou o nariz, onde a cicatrização poderá ser mais demorada. Segundo o “body piercer” Henrique Resende, no caso de se desenvolverem reacções alérgicas estas são facilmente resolvidas com pomadas mais fortes e alguns cuidados redobrados. Henrique é “body piercer” há mais de 12 anos e garante que o “piercing” na língua, quando feito por um profissional, não é perigoso. “O problema é que a maioria destas perfurações é feita por jovens que não têm uma higiene oral adequada levando à criação de bactérias e acumulação de cálcio o que se torna prejudicial. “Se a língua do cliente tiver demasiadas veias, vasos sanguíneos ou freios não podemos perfurá-los. Nós alertamos o cliente e informamo-lo de tudo. Os problemas poderão surgir quando em vez de profissionais, se recorre às lojas de vão de escada” alerta a “body piercer” Natasha Fontinha.
Já Orlando Monteiro da Silva, Bastonário da Ordem dos Médicos Dentistas, defende que os “piercings” na língua são um procedimento invasivo que pode colocar em risco a saúde em geral. “A língua é uma estrutura carregada de vasos sanguíneos e sujeita a hemorragias quando perfurada”, alerta. Contudo, e apesar de considerar este tipo de “piercings invasivos”, o médico não apoia aprovação do projecto de lei. Para Monteiro da Silva trata-se de uma decisão de cada indivíduo e a proibição significaria a intromissão do Estado em aspectos da vida privada.
Os “piercings” genitais são os menos pedidos e estão, na maioria das vezes, associados à cultura do “piercing”. “São geralmente requisitados por adultos, muitas vezes casais, entre os 30 e 50 anos (ou mais), com uma plena consciência do que querem. É um “piercing” que não se faz todos os dias. Por ano, faço em média 30. É algo sexual e os jovens não os procuram tanto”, esclarece Henrique Resende. “A zona dos genitais cicatriza mais rapidamente do que outras partes do corpo”, explica o “body piercer”.
O “Prince Albert”, nome pelo qual é conhecido no meio o “piercing” genital masculino, é colocado na glande e sai pela uretra. O feminino, ou “piercing clítoriano”, é feito, tal como o nome indica, no clítoris. “Normalmente cada pessoa faz entre um e três ‘piercings’ genitais, mas também há quem tenha 100 e isso já não considero saudável”, avalia Henrique Resende. Apesar de ser uma prática aparentemente estranha, que poderá causar infecções ou rasgadura, o ginecologista Fernando Mota, presidente da Associação Portuguesa de Ginecologia, diz que quando realizados por um profissional e respeitada a assepsia não haverá riscos para a saúde. “Se o Governo está preocupado com problemas de saúde pública relacionados com a aplicação de “piercings” ou tatuagens deveria informar as pessoas para que se possam tomar decisões fundamentadas e exigir o cumprimento de boas práticas pelas entidades prestadoras dos serviços”, defende o especialista.
Para Henrique e Natasha, é óbvio que se este projecto de lei for aprovado o circuito ilegal vai aumentar e começarão a ser feitos “piercings” caseiros, sem qualquer tipo de segurança ou conhecimento. “Nós não vamos poder fazê-lo, mas em casa, o amigo, sem o mínimo de experiência, vai”, diz Henrique Resende.
As origens do “piercing”Não há uma data consensual para o aparecimento do “piercing”, mas alguns historiadores afirmam que é um ritual com mais de 5000 mil anos que varia consoante a região do globo. Para Vítor Sérgio Ferreira, o sociólogo do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, com uma tese de doutoramento sobre este assunto, “a disposição para modificar e adornar o corpo com objectos que perduram em algum local é ubíqua e universal”. Consta que alguns clãs e tribos da África do Sul e da Índia, com milhares de anos, já usavam apetrechos para furar a pele, com conotações espirituais, sexuais e estéticas, em algumas das suas cerimónias e rituais. Na Idade Média, aristocratas e nobres usavam “piercings” para se destacarem dos seus pares. Diz-se mesmo que o “piercing” genital masculino se chama “Prince Albert” porque o príncipe Alberto de Inglaterra tinha um. “Faz parte de ritos de passagem colectivos e expressavam muito claramente, por toda a comunidade, a transição das etapas do ciclo de vida (maturidade sexual, casamento, estatuto social, posições de poder)”, esclarece Sérgio Ferreira.
Mais recentemente, as marcas foram, segundo o sociólogo do ICS, “investidas de conotações eróticas ainda mais evidentes ao recontextualizarem-se nas culturas ‘gay’ e sadomasoquistas dos anos 70, pervertendo as tradicionais categorias do belo e feio, do selvagem e civilizado, do moral e imoral”. Em tempos símbolo de riqueza, o “piercing” foi marginalizado e associado a uma cultura “underground”. Actualmente, apesar de mais massificado o seu uso, ainda é proibido em vários postos de trabalhos e tido como um símbolo de menor competência profissional.
Corpo dos portugueses cada vez mais furadoOs portugueses despiram-se de preconceitos, deitaram a língua de fora aos princípios judaico-cristãos, e começaram a cravar “piercings” por todo o corpo. Em Portugal, foi a partir da década de 90 que os “piercings” começaram a ser populares assumindo-se como imagem de marca, uma forma de ser diferente. Passados quase 20 anos, o conceito massificou-se e, hoje em dia, não são só os mais jovens que fazem um furo na língua, no nariz ou entre os olhos. O “piercing”, que em tempos distinguia a aristocracia e a nobreza das classes mais baixas, democratizou-se. Deixou os palácios, saiu à rua, e já não escolhe idades ou estratos sociais.