George Steiner na Gulbenkian: O progresso da ciência pode ter um fim?
Um dos mais prestigiados pensadores contemporâneos, explicou ontem em Lisboa porque é que receia que o conhecimento científico possa estar prestes a atingir os seus limites
Não é habitual que uma palestra destinada a um público alargado, seja qual for o tema de que trate, possa ser considerada um evento cultural de primeira ordem. Mas é difícil não reconhecer esse estatuto à intervenção com que George Steiner abriu ontem de manhã a conferência A Ciência Terá Limites?, promovida pela Fundação Calouste Gulbenkian. Não só pela qualidade da comunicação, mas porque quem apenas conhece o ensaísta dos muitos livros que publicou, não imagina a que ponto este professor de quase 80 anos, hoje radicado em Cambridge, consegue ainda ser um comunicador absolutamente contagiante.
A pergunta que Steiner trouxe – foi ele que propôs o tema à Gulbenkian – é inquietante: será que um dos mais sólidos pilares da civilização ocidental, a confiança no progresso ilimitado do conhecimento científico, pode ser, afinal, uma piedosa ilusão? É claro que a questão já foi muitas vezes posta, quer pelos que acham que existe um limite a partir do qual a ciência tem de ceder o passo à metafísica, quer pelos que questionam o progresso da ciência com base em pressupostos éticos. Steiner não ignorou estes argumentos, mas não foi neles que fundamentou a sua convicção de que estaremos a assistir a “indícios sérios de que a teoria e prática científicas estão a bater contra paredes, contra limitações que podem vir a revelar-se insuperáveis”.
Baseando-se nos testemunhos de cientistas, Steiner acredita que quer a exploração do macrocosmo estelar, quer a investigação do microcosmo das partículas pode estar a atingir, digamos assim, o seu limite técnico. Nenhum concebível aperfeiçoamento dos sucessores actuais do telescópio e do microscópio poderão, segundo crê, aumentar muito mais a fatia do universo que nos será dado conhecer. “Inumeráveis galáxias repousam para lá do horizonte de qualquer potencial observação”, diz Steiner, que garante ter ouvido físicos admitir que também “a observação microscópica está a aproximar-se dos seus limites”. Se estas suspeitas se comprovarem, acrescenta, “as consequências epistemológicas e psiocológicas serão incalculáveis”.
Perante estes condicionalismos, o conferencista acha que especulações muito em voga na Física, como a alegada existência de um número ilimitado de universos paralelos, caem na categoria da mística. Steiner ironizou particularmente com a célebre teoria das cordas, que, desde os anos 70, já estimulou “alguns dez mil artigos científicos”, e a que o físico e divulgador científico Richard Feyman chamou “um disparate louco”. Das várias críticas a esta teoria citadas por Steiner, a mais divertida é a que defende que “as suas conjecturas não chegam sequer a estar erradas”.
Comunicação difícil
Mas não são apenas as limitações técnicas, instrumentais, que, segundo Steiner, fazem recear uma crise da ciência. O ensaísta acha que outro dos principais obstáculos a um progresso científico genuíno pode vir da crescente hiperespecialização dos cientistas, que começa a impossibilitar a comunicação mesmo entre investigadores que trabalham em domínios muito próximos. E Steiner lamenta ainda muito particularmente o fosso que se cavou entre os cientistas e as comunidades a que pertencem, quer porque os primeiros “ainda não perceberam que têm mesmo de gastar algum do seu tempo a tentar estabelecer essa ponte”, quer pela complacência das sociedades ditas desenvolvidas com o assustador grau de “inumeracia” da quase totalidade dos seus habitantes. As implicações desta ignorância são, defende, “desastrosas”, já que muitos dos avanços em disciplinas como a biologia molecular, a bio-genética, ou a neuroquímica vão afectar a existência pessoal e colectiva de forma crucial.
Steiner acha que a saída está no ensino, desde os primeiros graus de escolaridade, e acredita que é possível estimular as crianças para a matemática. O tema entusiasmao tanto que, a dado momento, exortou mesmo a assistência: “Tragam-me cinco alunos de meios desfavorecidos e eu mostrolhes.” Mas também defende que só é possível esperar esse papel dos professores se estes forem bem pagos e recuperarem o seu prestígio.
Às limitações técnicas e à especialização excessiva, Steiner acrescenta ainda outro motivo de preocupação, que na verdade foi ofi cialmente formulado em 1931, mas que só agora começa a ser seriamente ponderado em todas as suas consequências: os teoremas de Gödel, que postulam que nenhum sistema pode fundamentar-se a si próprio e que, “em todos os sistemas, haverá sempre proposições que não podem ser validadas nem negadas”. Segundo Steiner, os teoremas de Gödel impugnam, designadamente, a possibilidade de uma teoria unifi cada, como a que Stephen Hawking chegou a prometer.
O ensaísta terminou com um sinal positivo, afi rmando não acreditar que estes e outros sinais que considera inquietantes impeçam a ciência de continuar a produzir descobertas relevantes e a encontrar novas aplicações para o que descobre. Mas admitiu que não é tranquilizador pensar que “20 milhões de americanos acreditam que Elvis Presley se levantou dos mortos”, ou que “financeiros de Wall Street dispõem os móveis dos seus ecsritórios sob a orientação de especialistas de animismo pseudooriental”, ou que a mulher do exprimeiro-ministro britânico Tony Blair “usa amuletos contra os raios cósmicos”.
“Espanta-me que os pobres não se revoltem”
Se a palestra de Steiner mostrara um pensador com uma visão pessimista, crítica e crepuscular da civilização ocidental, nada fazia prever, ainda assim, a indignada veemência com que depois se referiria, numa breve sessão de perguntas e respostas, às injustiças sociais dos nossos dias. Lembrando que “morrem diariamente pessoas à fome” e que, embora existam meios para o evitar, “ninguém faz nada”, Steiner desabafou: “Espanta-me que os pobres não se revoltem.”
Uma jovem estudante quisera saber se, apesar de todas as suas reservas, o pensador não achava que a humanidade vivia hoje melhor do que em qualquer época do passado. Steiner discordou, notando que era preciso perguntar “quem vive melhor?”, já que, argumentou, o que era verdade para a “burguesia esclarecida” que fora assistir à sua conferência na Gulbenkian, já não o era, mesmo no ocidente, para os desempregados, para as crianças obrigadas a trabalhar, ou para os prostitutos de 14 anos espalhados pelas esquinas das cidades europeias. E recordou que os negócios que hoje movimentam mais dinheiro são a pornografia, a prostituição e a droga, ao mesmo tempo que, em plena Inglaterra, estão a regressar doenças infantis motivadas pela subnutrição, que se julgavam já definitivamente afastadas no tempo de Dickens.
Mas Steiner não se ficou pelo diagnóstico crítico das inquidades do nosso tempo. Algumas das suas declarações andaram muito perto de poder ser lidas como um declarado apelo à revolta social. À revolta violenta, entenda-se: “Não percebo como é que ainda não foi assassinado nenhum desses empresários que encerram fábricas e depois se metem nos seus jactos privados para ir passar férias a Barbados.”
Steiner expressou também a sua indignação pelo modo como o ocidente tem sido cúmplice do que se está a passar na China com a preparação dos Jogos Olímpicos de Pequim. “Estão a limpar ruas inteiras e a despejar as pessoas das suas casas.” No entanto, acredita que o futuro é mesmo do Oriente, e, sobretudo, da Índia. Se vier a surgir um novo Platão ou um novo Mozart, ele será indiano, profetiza.
Ao contrário, deposita poucas esperanças no futuro próximo da cultura ocidental, que, diz, “está muito, muito cansada”. Mas recomenda que se encare esse facto sem excessivos dramatismos. “Tivemos uns óptimos dois mil anos, agora devemos dar a vez a outros.”
Para Steiner, uma das grandes incógnitas é a de se saber o que vai substituir a religião nas sociedades ocidentais. “Dará com certeza origem a outra coisa qualquer”, prevê, “porque a maior parte das pessoas não conseguiria suportar o vazio”. Neste momento, só no futebol consegue entrever algo de próximo de uma religião universal. Recordando o episódio em que Maradona, após ter metido um golo com a mão, afirmou que fora “a mão de Deus”, Steiner ironiza: “Depois de Agostinho e Tomás de Aquino, Maradona é o nosso último grande teólogo.”
Steiner aproveitou ainda o contacto com os jornalistas para deixar clara a sua condenação da recente campanha movida contra James Watson, após o co-descobridor da estrutura do ADN ter feito declarações consensualmente tidas como racistas. Recusando-se a comentar a substância das afirmações de Watson, Steiner lamentou, no entanto, que este tenha sido perseguido pelas suas opiniões numa sociedade que afirma prezar a liberdade de expressão. “Em Pisa, até lhe retiraram a medalha Galileu.”