"O Capacete Dourado" descobre ainda para nós uma ligação entre "Fúria de Viver" (1955) e "2001 Odisseia no Espaço", de Stanley Kubrick (1968), entre a epifania de Dean a ver os astros no observatório e a "trip" de um astronauta coreografada pelo "Danúbio Azul" de Strauss. Para a "viagem" cósmica dos adolescentes do filme de Cramez também servem o "Danúbio" e os capacetes, os capacetes como os dos astronautas de "2001..." Este filme podia ter sido concretizado em 1989, quando Teresa Villaverde (nascida em 1966) e Pedro Costa (nascido em 1959) disseram ao que vinham, anunciando uma nova geração de cineastas, enquadrando de frente a infância e a adolescência como bolha de exclusão. Foi em "A Idade Maior" e em "O Sangue", e a partir daí várias primeiras obras de cineastas portugueses ficaram presas a histórias de iniciação.
Havia a bofetada de um pai em "O Sangue". Agora ouve-se o eco dessa bofetada - mais, vê-se a bofetada ("Então, Pai!") em "O Capacete Dourado", enquadramento frontal. Tarde de mais, então, para este filme? Este filme chega tarde de mais, mas é assim que ele é e se apresenta, glorificando o cinema que ama e amou e o cinema que (já) passou. Expondo: este é o meu património afectivo, "estes são os meus filmes", "isto sou eu", "esta é a minha família".
Para além dos fantasmas do cinema americano, aparecem, em participações especiais muito concretas: Teresa Villaverde (uma cena com Ana Moreira que figura em miniatura uma relação silenciosa, sem palavras, que as une desde "Os Mutantes", de 1998); Manuel Mozos, habitando em "O Capacete Dourado" um mundo de sentimentos sufocados, como os de "Um Passo, Outro Passo e Depois" (1989) e "Xavier" (1992), filmes que Mozos realizou; até Joaquim Leitão, que nos anos 1980 fez a (sua) hipótese portuguesa de cinema americano. "O Capacete Dourado" olha para trás e faz o resumo: sentimento terminal, de algo que acabou, que foi assim e que só ainda é assim pelas promessas que o cinema engana. Para Cramez "é" ainda assim - por um filme, por este filme -, por isso este pode ser um auto-retrato.
Filme reaccionário?Veja-se este exemplo, Pedro Costa: despediu-se de "O Sangue" à segunda longa-metragem, "Casa de Lava" (1994). Havia naquele filme, disse, demasiado cinema. Isto é: o cinema faz mal. Hoje Costa descasca as camadas do que é "demasiado", o cinema, e isso faz dele um dos rostos da cinematografia "contemporânea". Jorge Cramez faz o oposto: tudo em nome dos filmes. Trocou até a verdade do acontecimento real em que o filme se baseia - argumento escrito por Rui Catalão e Carlos Mota - pelo fogo-de-artifício. Isto é: o cinema salva.
A contracorrente? Sim. Reaccionário? Talvez. E talvez não. "O Capacete Dourado" é um auto-retrato "através de...". Tem os tempos de uma auto-exposição. Um olhar que se descola sempre do que conta para dar a ver quem conta. É um filme com desvios, que se esquece propositadamente de fechar a história. (Isto, afinal, é de hoje; isto é mais do cinema de hoje). A câmara está virada para o lugar do cineasta. Na sequência da festa, o realizador corta a música ambiente ao som da qual os adolescentes dançam, e, saindo da ficção para se dirigir ao espectador (essa autoconsciência é de hoje, isto é mais do cinema de hoje), mostra-nos a música dele, "Ocean Rain", Echo & the Bunnymen. É diferente de ouvir Echo & the Bunnymen (a canção "Killing Moon") no filme de Richard Kelly "Donnie Darko" (2001). Nesse filme, a música do grupo de Ian McCulloch sinalizava: filme de época, filme passado nos anos 1980. Em "O Capacete Dourado", os Echo & the Bunnymen mostram Jorge Cramez. Qualquer que seja a época em que ele hoje viva...