Tudo isto é transposto para uma trama social e política onde não falta uma leitura actual - os textos do único "doutor da Igreja" português são de uma validade tremenda. Aí está o mérito: ao aproximarse dos traços históricos mais autênticos de António de Pádua (ou de Lisboa, para os portugueses), Belluco afastou-se do santo popularucho construído ao longo dos séculos. O próprio já o disse: "No filme, há muitos ingredientes: religião, acção, política, mistério.Só não há milagres, porque António não fez milagres durante a sua vida."
Não se vai a este filme, portanto, como a uma noite de marchas ou comer sardinhas num arraial. A chegada de António a um lugar era uma festa para as pessoas, sim - foi pela pressão popular que a Igreja fez dele a mais rápida canonização da história. Mas nem o santo de origem portuguesa foi milagreiro, nem Belluco quis filmar um santo delicodoce, à imagem do "Jesus de Nazaré" de Zefirelli.
Antonello Belluco tem um perfil multifacetado, cruzando a direcção de organismos de cinema e televisão com a realização de documentários, ficção, videoclips e ainda a escrita e encenação de teatro. A este trabalho não será alheio o bom nível da direcção de actores - e, já agora, a excelente prestação de Jordi Mollá na figura de António de Lisboa. Ao actor (que já foi dirigido por Peter Greenaway, Pedro Almodôvar ou Bigas Luna) não falta mesmo o sotaque do sul, a compor a figura do português.
No início, a obra diz ao que vem: Pádua é, no primeiro quartel do século XII, uma cidade usurpada pelos usurários. A cidadania resumese aos que detêm o poder - económico, base do domínio político, legislativo e judicial. António (c. 1192 - 13 de Junho de 1231) aparece, vindo da longínqua Lisboa. Primeiro parêntesis: esta é uma nota de rigor, ao arrepio do que por vezes sucede. Os especialistas assinalam que a força intelectual de António repousava na formação recebida nos mosteiros dos cónegos regrantes em Lisboa (São Vicente de Fora) e Coimbra (Santa Cruz). Apesar de não se referir a Coimbra, o filme cita várias vezes as origens lisboetas de António.
António aparece, então, sobrevivente de um naufrágio, (quase) única cedência de Belluco ao domínio do não confirmado. Perante o desregramento a que chegara o poder da cidade, clama, em plena praça da catedral, contra a usura e os que a praticam. "Os ricos e poderosos roubam aos pobres os seus haveres, adquiridos com suor e lágrimas. Ainda por cima, chamamlhes seus vilãos, quando eles é que são vilãos do diabo. (...) O rico deste mundo perverte a justiça, roubando os pobres ou não lhes dando o que é seu", escreveu o santo, no seu "Sermão do 10º Domingo de Pentecostes". Esse discurso na praça da catedral de Pádua, perante Baldrico Scrovegni - da mesma família que depois pagará a Giotto a pintura da fabulosa Capela que herdou o apelido - é um dos momentos do filme: sob a chuva, símbolo purificador, a palavra e o olhar de António transfiguram a mulher de Tebaldo (o usurário decadente) e amante de Baldrico (o usurário em ascensão). "Imagino que o inferno seja a impossibilidade de ver a luz de Deus." Outra transfiguração - a de Folco, ex-criminoso convertido em companheiro - é o elemento que Belluco utiliza para dar unidade formal à história.
O filme retrata António tal como o pintam os melhores investigadores da figura do santo: um homem que centrava a vida em Deus e não tinha medo de enfrentar ricos, bispos, frades e até o Papa: "A Igreja não é Deus, a Igreja deve estar ao serviço de Deus." Ao mesmo tempo comunicativo, capaz da ternura e da proximidade para com os mais pobres e os enjeitados, radicalmente franciscano no seu desprendimento. É este António multifacetado, compassivo e violento, ainda actual, que Belluco nos mostra. Um santo perigoso, mesmo hoje. Segundo parêntesis: será moda não traduzir o que é dito em latim (orações, por exemplo)? Neste filme, isso volta a acontecer. Ignorância? Preguiça dos tradutores? Falta de dinheiro para pagar mais uma tradução? Belluco ao domínio do não confirmado. Perante o desregramento a que chegara o poder da cidade, clama, em plena praça da catedral, contra a usura e os que a praticam. "Os ricos e poderosos roubam aos pobres os seus haveres, adquiridos com suor e lágrimas. Ainda por cima, chamam-lhes seus vilãos, quando eles é que são vilãos do diabo. (...) O rico deste mundo perverte a justiça, roubando os pobres ou não lhes dando o que é seu", escreveu o santo, no seu "Sermão do 10º Domingo de Pentecostes".
Esse discurso na praça da catedral de Pádua, perante Baldrico Scrovegni - da mesma família que depois pagará a Giotto a pintura da fabulosa Capela que herdou o apelido - é um dos momentos do filme: sob a chuva, símbolo purificador, a palavra e o olhar de António transfiguram a mulher de Tebaldo (o usurário decadente) e amante de Baldrico (o usurário em ascensão). "Imagino que o inferno seja a impossibilidade de ver a luz de Deus." Outra transfiguração - a de Folco, ex-criminoso convertido em companheiro - é o elemento que Belluco utiliza para dar unidade formal à história.
O filme retrata António tal como o pintam os melhores investigadores da figura do santo: um homem que centrava a vida em Deus e não tinha medo de enfrentar ricos, bispos, frades e até o Papa: "A Igreja não é Deus, a Igreja deve estar ao serviço de Deus." Ao mesmo tempo comunicativo, capaz da ternura e da proximidade para com os mais pobres e os enjeitados, radicalmente franciscano no seu desprendimento. É este António multifacetado, compassivo e violento, ainda actual, que Belluco nos mostra. Um santo perigoso, mesmo hoje. Segundo parêntesis: será moda não traduzir o que é dito em latim (orações, por exemplo)? Neste filme, isso volta a acontecer. Ignorância? Preguiça dos tradutores? Falta de dinheiro para pagar mais uma tradução?