As Vidas dos Outros: Do outro lado da nostalgia

"As Vidas dos Outros" encaixa neste paradigma de uma ficção presa a uma reconstituição cuidada e quase teatral de momentos marcantes na evolução de uma Alemanha estigmatizada pelas cicatrizes da Guerra e pela divisão em dois Estados. O argumento assenta, basicamente, na resistência intelectual da chamada República Democrática Alemã à anulação do indivíduo pela máquina repressiva da ditadura comunista, representada pela polícia política, a Stasi.

A este nível, "As Vidas dos Outros" começa por situar-se numa reacção a uma espécie de nostalgia representativa que encontrava na excelente tragicomédia "Adeus Lenine" (Wolfgang Becker, 2003) o seu ponto culminante de fricção: ao contrário deste último, "A Vida dos Outros" não embeleza o folclore risível da diferença; antes, enfatiza um clima de suspeição permanente, um labirinto de denúncias em cadeia, um sistema de chantagem emocional que faz de uma nação um bando de colaboracionistas do regime, perpetuando o medo. Por isso, o filme se socorre da estrutura do "thriller" político para aceder à essência de um mundo ao contrário, em que as escutas telefónicas e as restrições da privacidade parecem constituir a regra, justificando a burocracia de estado pela sua sobrevivência, como se perseguir o direito à diferença constituísse um teatro específico da anulação da individualidade.

Fundamental se torna, assim, o facto de a acção decorrer no mundo exposto do teatro, com uma marcação cerrada dos actores que extravasa do espaço restrito do palco para um outro palco: o tratamento do espaço fechado do apartamento pauta-se por esta noção claustrofóbica de um universo em curto-circuito, em que a polícia política encena o drama em gente e se encena. "As Vidas dos Outros" actua sobre o "real" e constrói um anti-comunismo "justificado" na medida em que fala do que conhece: a repressão não é uma repressão em abstracto, mas um dado real. O agente da Stasi, Gerd Wiesler (prodigiosa interpretação em minimal "underacting" de Ulrich Mühe), embora dempenhado no mecanismo da repressão, acaba por revoltar-se e sabotar o sistema. O que faz deste filme um objecto tão interessante passa, pois, pela rejeição de um demagógico discurso que se cifrasse em esquemático confronto entre Bem e Mal, substituindo-lhe gradações da compreensão do momento histórico em que se torna essencial alterar o dilema moral: dentro do sistema repressivo aparecem germens de discórdia que o fazem implodir, sabotando a facilidade de uma leitura maniqueísta. Não há qualquer fascínio pelo passado, apenas uma crua memória de uma encenação do medo, como se isso bastasse para tornar dialéctica uma relação entre actores e personagens.

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