Bailado moral

Sim, uma encomenda, porque, vamos ser sinceros, isto de ser um autor reconhecido internacionalmente dá cachet mas é uma chatice porque Hollywood fica de pé atrás, como ficou provado quando "Gangs de Nova Iorque" (2002) e "O Aviador" (2004) falharam os prémios principais para os quais haviam sido nomeados. "Entre Inimigos" é não só encomenda como ainda por cima é "remake", do mui cultuado "Infiltrados" (2002), fita de acção de Hong Kong em modo pós-John Woo dirigida por Andrew Lau e Alan Mak - há um círculo que se fecha quando o virtuosismo seco e elegante de Scorsese se dedica a refazer um filme que usou o seu cinema como inspiração, tanto mais irónico quanto "Entre Inimigos" suplanta largamente "Infiltrados". Mas há também a consciência de que, nas mãos de um cineasta como Scorsese, "encomenda" e "remake" não têm de significar "vendido" ou "has-been" - recorde-se que um dos seus grandes filmes, "A Cor do Dinheiro" (1986), era uma encomenda, recorde-se que o nada negligenciável "O Cabo do Medo" (1991) já era uma "remake".

Seja como for, "Entre Inimigos" vem também reconfortar os scorsesianos desiludidos com os opus anteriores do mestre - "Kundun" (1997), elegia budista concebida como "yang" para o "yin" de "A Última Tentação de Cristo" (1988); o pesadelo urbano de "Por um Fio" (1999), gémeo malsão de "Nova Iorque Fora de Horas" (1985); "Gangs de Nova Iorque", concretização de um projecto de longa data do realizador; e "O Aviador", biografia do excêntrico magnata Howard Hughes que Scorsese tomou das mãos de Michael Mann. Ora, tomar daí que "Entre Inimigos" seria um "regresso à boa forma" é falácia que implicaria pensar em Scorsese como cineasta que andou "perdido" e regressa agora ao "rebanho". Bastaria pensar no extraordinário plano do porto em "Gangs de Nova Iorque" para perceber que Scorsese nunca faz senão o filme que quer fazer (as suas batalhas com o infame ex-patrão da Miramax, Harvey Weinstein, no "plateau" de "Gangs..." são lendárias), mesmo quando não está a fazer o filme do seu coração.

"Entre Inimigos" começa por reforçar o traço obsessivo que veio ao de cima nos mais recentes trabalhos do realizador, sublinhado pela presença comum de Leonardo di Caprio (garante de financiamentos internacionais) desde "Gangs de Nova Iorque", para se desenhar em seguida como uma síntese dos traços essenciais do seu cinema, como quem se diverte a fazer aquilo que sabe fazer melhor e aperfeiçoa o dispositivo que pacientemente construiu ao longo de uma carreira. Em entrevistas Scorsese admitia a sensação de cansaço e o receio de se repetir que antecederam a sua decisão de aceitar dirigir "Entre Inimigos" - o que mais haveria para dizer no género da saga criminal depois de "Tudo Bons Rapazes" e "Casino" (1995)? Vai-se a ver, bastante, sobretudo porque não estamos numa saga exclusivamente criminal: os "infiltrados" do original de Hong Kong são neste "remake" americana um polícia infiltrado na mafia irlandesa de Boston e um mafioso irlandês infiltrado na polícia de Boston, ou seja, de repente entramos num universo obsessivo onde o bem e o mal se misturam até já não ser possível distingui-los e onde os heróis procuram a redenção possível de uma culpa que transportam mas não podem expiar. Como quem diz, os criminosos somos nós todos - ninguém é inocente, ninguém é puro (no que se prolonga o retorno às origens brutais e primitivas da civilização americana em "Gangs de Nova Iorque"). Se a redenção sempre foi um dos pontos-chave do cinema de Scorsese, a verdade é que ela é cada vez mais um horizonte inalcançável, sobretudo depois do 11 de Setembro (e o abismo negro de "Entre Inimigos" reflecte o caos moral em que esse dia lançou o mundo e, sobretudo, os EUA). Essa necessidade de redenção corre par a par com a questão da filiação que é também recorrente no cinema de Scorsese, cheio de heróis "órfãos" que procuram a aceitação de uma figura paternal, e com a exploração dos universos "tribais" (mais do que "étnicos") e dos seus códigos particulares, aqui polícias e ladrões separados pela "linha da fronteira" de uma legalidade que já pouco ou nada representa.

É, aliás, aí que "Entre Inimigos" demonstra o virtuosismo formal de um cineasta verdadeiramente no pico do seu talento: ao "desdobrar" essa síntese e essa exploração de temas num autêntico "jogo de espelhos" que faz dos dois "heróis" (à falta de melhor palavra) interpretados por Di Caprio e Matt Damon reversos de uma mesma medalha, pólos opostos, extremos que se tocam, Bem e Mal indissociáveis e inseparáveis. Ou, mais ainda, como transformar uma simples encomenda num filme com toda a alma do seu autor.

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