Porque é uma cidade, também, repleta de "clichés". Cada um dos seus monumentos já teve o seu momento cinematográfico. Não nos podemos esquecer: esta é a cidade que aliciou Woody Allen a abandonar Nova Iorque para filmar nas margens do Sena "Everybody Says I Love You". Por isso, quando "Paris je t"aime" se anunciou como um projecto de vários episódios centrado numa história de amor na Paris nos nossos dias, era difícil imaginar que pudesse ser original - apesar da colecção de talentos envolvidos.
Mas, afinal, quem é que não dava tudo para ver um filmezinho cómico realizado pelor Joel e Ethan Coen tendo como protagonista Steve Buscemi? Ou Alexander Payne na sua estreia como actor num filme de Wes Craven, onde faz de Oscar Wilde no cemitério Pére Lachaise? Ou Gus van Sant em "Marais", com Marianne Faithfull? Actores como Juliette Binoche, Maggie Gyllenhaal, Elijah Wood, Gena Rowlands e Bob Hoskins também se juntaram à viagem. E esta colecção de gente do cinema passou em Paris um bom bocado. Isso era palpável em Cannes quando o intimidante contingente se apresentou para falar sobre o filme. O sempre bem-humorado mexicano Alfonso Cuarón - realizador em cujo episódio entra Nick Nolte como pai americano de Ludivine Sagnier - também tem agora a cidade no seu coração.
"A beleza disso tudo foi poder partilhar este projecto com pessoas fenomenais e saber que um ano depois podíamos encontrá-las novamente para sairmos à noite e apanhar uma bebedeira - esse foi outro incentivo. Andava por essa altura a preparar "Filhos do Homem" [já nas salas] e queria experimentar o que podia fazer em tempo real, e cinco minutos constituíam um desafio incrível".
O projecto foi imaginado por Tristan Carné: 20 cineastas eram convidados a filmar uma curta-metragem de cinco minutos em três dias, entre Junho e Novembro de 2005, sobre um dos vinte bairros da cidade. No início "Paris je t"aime" soava como um projecto para ficar nos arquivos. Tais filmes tipo manta de retalhos quase nunca chegam às salas, apesar de exemplos recentes de filmes em "sketches" sobre crianças e pobreza, sobre o 11 de Setembro, ou de exemplos passados, que fizeram uma época na comédia italiana ou na "nouvelle vague". No entanto deu-se um clique: Paris libertou a sua magia e o filme teve desde logo assegurada distribuição mundial.
Ainda assim, não foi fácil. Deixar 20 realizadores à solta com as suas câmaras foi só o início dos problemas. Vão todos agradar da mesma maneira? Não. Alexander Payne: "Se o público não gostar dum filme, virá outro a seguir". Cada realizador trabalhou as suas curtas, e Frédéric Auburtin supervisionou a estrutura. Por fim, foi decidido que "Paris je t"aime" funcionaria melhor se os segmentos fossem dedicados a zonas e monumentos conhecidos, em vez de aos "arrondissements". Emmanuel Benbihy criou as transições, e para fazer com que o filme fluísse foram cortados dois episódios (do dinamarquês Christoffer Boe e do francês Rafael Nadjari). "Oh, foi para bem do filme, o corte de cenas é um processo habitual", defendeu a co-produtora Claudie Ossard.
a cidade e o mundo.O segmento de Tommy Twyker, passado em Faubourg Saint-Dennis, com Natalie Portman, foi eleito como cabeça de cartaz para atrair investimentos. Quando os irmãos Coen viram o pequeno filme, decidiram envolver-se. O seu contributo, "Tuileries", que se passa na estação do Metro da zona e tem como protagonista Steve Buscemi como desventurado turista, acaba por ser o mais obviamente sedutor.
O contributo do realizador de "Sideways", Alexander Payne, sobre o 14º "arrondissement" captou a magia parisiense com a sua história de uma turista texana que fala o pior francês do mundo - de todas as interpretações a de Margo Martindale, de 55 anos, com forte sotaque sulista é a que mais se destaca. "Recebi uma chamada telefónica: "Olá, aqui é Alexander Payne, gostaria de ir a Paris fazer um filme?". Como nunca tinha estado em Paris disse logo: "Sim, quero". Ele perguntou-me se eu falava francês e eu disse: "Nem uma palavra". E ele: "Ainda bem. "
O facto dos filmes mais ligeiros terem sido misturados com os mais pungentes faz "Paris je t"aime" funcionar como um todo. "Quando se tem um conjunto de curtas há a tendência de procurar uma narrativa comum interior, mas temos que aceitar que é mesmo uma sucessão de curtas", diz Cuarón. Mas acrescenta: "Há algo de metatextual nisto, Paris como cidade do cinema. A maior parte de nós quis fazer parte disto porque há uma série de referências cinéfilas. Quando procuramos os sítios para filmar não se consegue evitar: encontramos sempre lugares onde outros filmes foram rodados, houve filmes que inspiraram tanto estas histórias como o amor". Precisamente: um dos episódios com mais trunfos cinéfilos foi rodado no Quartier Latin e reuniu velhos amigos, Gena Rowlands e Ben Gazzara, que manifestam uma interacção quase telepática como antigos amantes - segmento realizado em parceria por Frédéric Auburtin e Gérard Depardieu e escrito por Rowlands. "O Gérard é agora como se fosse da família. Todos nós o adoramos, ele é tão talentoso e um actor generoso. Já trabalhou com o meu filho [Nick Cassavetes] e o meu falecido marido [John Cassavetes] tinha-o em grande conta", diz Gena Rowlands. "Quando o Gérard diz que nos vamos divertir à brava a fazer alguma coisa, provavelmente isso irá acontecer" - e podemos imaginar o que acontece quando as vinhas do robusto francês entram na equação.
As filmagens decorreram bastante naturalmente para Rowlands, que conhece Gazarra desde os anos 50, quando ambos partilharam o mundo de Cassavetes. "Eu queria ver se era possível mostrar em cinco minutos duas pessoas da nossa idade, dando indicações mínimas sobre o que lhes aconteceu durante a vida e como é que chegaram aqui", continua Rowlands. "Podíamos dizer só a partir dos diálogos que essas duas pessoas se amaram durante muito tempo mesmo que estejam separados há muito. As pessoas pensam que a vida pára quando temos 30 ou 40 anos. Eu estava interessada em mostrar que muitas coisas continuam. A vida não é só para os jovens e os belos: é para todos. É uma experiência completa que dura o tempo que quisermos."
A realizadora catalã Isabel Coixet consegue notável acutilância quase sem diálogos no seu segmento passado na Bastilha - com Miranda Richardson e Sergio Castellito -, enquanto Gurinder Chadha ["Bend it like Beckham"] trouxe a sua sensibilidade anglo-indiana a uma história multiracial nos subúrbios operários de Quais-de-Seine. "No espaço de dez minutos concebi a história que queria contar, porque ao ser inglesa e indiana sigo de perto os acontecimentos dos franceses cujos pais vêm de outros países", explica Chadha. "Conhecia e queria fazer um filme sobre uma muçulmana parisiense. Podia ter acontecido em qualquer bairro mas tinham-me atribuído o 5º e fosse por os produtores o saberem ou por haver outra força exteriorn envolvida, aconteceu que no meu bairro havia uma mesquita. Talvez Allah tivesse dado uma mãozinha." A escolha provou ser oportuna porque havia motins por essa altura nas ruas de Paris. "Ligava a televisão antes de me fazer a caminho das filmagens e Paris estava em chamas. Tudo isso afectou o que estávamos a fazer." A última coisa que qualquer dos realizadores queria fazer era um filme perto da Torre Eiffel. Essa parte calhou a Sylvain Chomet ("As Triplettes de Belleville"). "Calhou que fosse o último realizador a entrar a bordo e ninguém queria o 7º "arrondissement". A Torre Eiffel não é fácil de ser colocada em filme, mas era o que ainda restava", lamenta Chomet.
Impetuoso é o segmento do canadiano Vincenzo Natali, com Elijah Wood. "Concordei fazer parte do projecto antes sequer de saber o que ia ser a história", diz o "hobbit" mais famoso do cinema. "Quando descobri que era sobre um vampiro foi a cereja em cima do bolo. Fiquei intrigado pela forma como as coisas se organizaram, trazendo realizadores de todo o mundo. Foi a primeira vez que filmei em Paris e foi incrível. Foram só duas noites, mas foram noites longas".
O segmento, passado no cemitério de Pére Lachaise, tem a colaboração de Alexander Payne no papel de Oscar Wilde. "Foi a primeira vez que entrei num filme e como acontece frequentemente fiquei com o papel porque três outros actores recusaram", diz Payne, impassível. "Eles precisavam de alguém disponível para filmar no dia seguinte. O meu cabelo era na altura suficientemente comprido e precisavam de uma pessoa assim embora no fim me tenham dobrado", descreve com fingido desconsolo. Provavelmente o mais internacional dos projectos teve origem no australiano Chris Doyle, director de fotografia, entre outros, de Wong Kar-wai. Vive no Japão, em tempos viveu em Paris, e aqui é o realizador de um filme que tem como protagonistas o realizador germânico-americano Barbet Schroeder e Li Xin. "Vivi em Paris e vivi na China, tentei misturar as duas coisas. Há coisas fantásticas que se aprende sobre uma cidade quando se faz um filme. Quis também provar que uma equipa francesa pode trabalhar tão rapidamente como uma equipa de Hong Kong" - a mesma equipa francesa foi utilizada para todos os segmentos. "Não ficaria surpreendido se houvesse mais projectos do género noutros lugares. Cada cidade alberga imensas histórias escondidas e iria beneficiar do olhar estrangeiro", diz Alfonso Cuarón. "Quase todas as cidades do mundo são habitadas por pessoas de diferentes cidades do mundo. O que acontece é que criamos um mundo muito pequeno e quando chegam ali grupos de realizadores todos irão encontrar o seu próprio caminho de reflecção desse mundo", conclui Chadha.
Ainda assim, não há nada como Paris...