Longe vão, pois, os riscos, calculados embora, de "M.A.S.H" (1970), de "A Noite Fez-se para Amar" (1971) - desconstruindo o "western" - ou de "Images" (1972) - fragmentando a acção, quase para além dos limites do compreensível. Sobretudo depois de "Nashville" (1975), ainda hoje o centro distribuidor do seu aparato conceptual, Altman institui-se no pequeno (grande?) mestre da narrativa estilhaçada em mil pedaços, reconstituída com meticuloso e, por vezes, artificial método. Desta matriz, descendem, por exemplo, "Um Casamento" (1978), "O Jogador" (1992) ou "Short Cuts - Os Americanos" (1993), que fazia confluir para um gigantesco microcosmos pequenas histórias seleccionadas no universo complexo de Raymond Carver, ou até o "pastiche" de Agatha Christie, misturado com "Regra do Jogo" de Jean Renoir, que é "Gosford Park" (2001).
O seu novo filme, "A Prairie Home Companion - Nos Bastidores da Rádio" (explicativo título de recurso para o intraduzível "Prairie Home Companion", que inclui a "pradaria", como tema e lugar, para acentuar o carácter de uma americanidade profunda), encaixa, na perfeição, neste paradigma de juntar pequenos mosaicos num todo, unificados como em "Nashville" pela noção de espectáculo, na despedida de um tempo que não volta mais. Convoca-se, deste modo, para o seu universo representativo a nostalgia dolorosa de "A Última Sessão" de Peter Bogdanovich: semelhante desejo de apresentar o fim de uma época, igual noção crepuscular de um género e de uma forma de ver o mundo.
Filme de um velho, a braços com as suas próprias vontades testamentárias? Sem dúvida. E, no entanto, este "longo adeus" aos dias da rádio, esta quase masoquista insistência na presença da morte em cena, contém em si todo o "panache" do seu estilo inconfundível e a caução estelar, a que nos acostumou: mais uma vez Meryl Streep renasce das cinzas de eterna Fénix para compor a cantora decadente que revisita o "paraíso perdido" dos "shows" ao vivo, com publicidade ilustrativa; Lily Tomlin, presença altmaniana por excelência, marca o ponto em invulgar autocaricatura; Woody Harrelson encarna o "cow-boy" cantante com transgressiva graça; Tommy Lee Jones tem a seu cargo o executor físico da machadada final no espectáculo, acabando também por ser vítima dele.
Mas há mais: não contente com cruzar a sua autoreferencialidade, com as citações de Bogdanovich, Altman convoca outros fantasmas, pondo em cena a morte, em forma de mulher de gabardine branca (Virginia Madsen em estereótipo de "femme fatale", ela própria oriunda de "pastiches" quase sem sentido de um género irremediavelmente passado) e, assim, estabelecendo ínvias rimas internas com outro dos incontornáveis filmes que se ocupam do fim de um género e de um mundo, "All That Jazz" (em que a morte também tinha letal forma feminina), com o qual Bob Fosse ajustava contas com o musical e com a sua autodestrutiva mortalidade. E tudo isto sob a égide envolvente de uma paródia ao "film noir" - não por acaso, a figura do detective (Kevin Kline, em registo cómico de personagem perdida, vinda de outras ficções) que comanda a acção e dá voz "off", de artificial primeira pessoa, à narrativa englobante, se chama Guy (como tipo) Noir.
E, depois, existe uma outra marca cultural de inescapável significado: o teatro, em que decorre a função, chama-se Fitzgerald, como em F. Scott Fitzgerald, situa-se na cidade natal do autor de "O Grande Gatsby" e possui, em lugar de destaque, o busto do romancista, presidindo à cena em que Tommy Lee Jones assiste do camarote (uma espécie de aquário ou de redoma), quase como máscara mortuária ou como resistente troféu, a simbolizar um novo fim de mais um "sonho americano".
Tudo contabilizado, não se tratará de um grande Altman, mas revela a sua maestria, a solidez de um encenação impecável e a coerência exemplar do seu estilo e do seu particular modo de se confrontar com as sombras do cinema e com a americanidade. Não é assim tão pouco...