Durante muitos anos, a palavra "realizador publicitário" ou "realizador de telediscos" parecia dar taquicárdia aos apreciadores de cinema - há muita gente a quem ainda dá: foi ao "laboratório" formal e narrativo da publicidade e dos video-clips (resumidamente: convencer um espectador relutante a ficar a ver em 30 segundos ou três minutos) que Hollywood foi buscar, nos anos 80 e 90, toda uma geração de "tarefeiros" de aluguer, capazes de embrulhar de maneira espectacular o maior do vazios (com alguns, poucos, nomes genuinamente talentosos pelo meio). No entanto, a mais recente geração de "trânsfugas" está a marcar a diferença de maneira significativa: chamam-se Spike Jonze, Michel Gondry, Jonathan Glazer, Mike Mills, autores de alguns dos filmes mais sofisticados e desafiadores das convenções "mainstream" dos últimos anos. Aos quais se juntam, agora, os californianos Jonathan Dayton e Valerie Faris, autores de "Uma Família à Beira de um Ataque de Nervos", que chega agora às nossas salas depois de um fulgurante "boca-a-boca" americano no seguimento do seu triunfo em Sundance 2006.Uma geração pouco interessada em fazer o "blockbuster" do momento, preferindo refugiar-se numa excentricidade sensível feita à medida do que se define hoje como o "cinema independente" de modelo americano: um olhar enviesado para o quotidiano, observado pelas portas travessas de quem se sente de fora, e um estilo flexível, fluido, adaptado à história que se quer contar. São, de certa forma, herdeiros da atitude "seventies" que, por breve espaço de tempo, veio subverter aquilo que era suposto ser um filme de estúdio - o equivalente contemporâneo de Peter Bogdanovich, Hal Ashby, Bob Rafelson, Martin Scorsese, a geração que fez implodir Hollywood por dentro (mas, no processo, levou apenas à reconstrução do que ficara para trás). Uma geração que - ao contrário das que a precederam - não filma com as marcas estéticas do teledisco ou do anúncio e prefere usar a câmara para contar histórias e filmar pessoas.
"As que a precederam"? Primeiro, na transição dos 70s para os 80s, a vaga de cineastas ingleses oriunda da publicidade, que conquistou Hollywood com o seu "savoir-faire" visual, capaz do muito bom e do muito mau: Alan Parker, Adrian Lyne, os irmãos Ridley e Tony Scott, prolongada em França por Jean-Jacques Beineix ("A Diva e os Gangsters", 1981; "Betty Blue, 37,2º de Manhã", 1986).
Depois, em meados dos anos 80, a vaga de cineastas formados na escola do teledisco, quase todos reduzidos à pura vertigem do estilo e incapazes de se aguentar à bronca na longa-metragem: Russell Mulcahy ("Razorback", 1984; "Duelo Imortal", 1986), Julien Temple ("Absolute Beginners", 1986; "Absolutamente Loucos", 1988), Steve Barron ("Electric Dreams - Amor e Música", 1984). E, já na década de 1990, uma "segunda geração" mista com experiência em ambos os campos, contratada pela capacidade de "cumprir" o caderno de encargos que lhes era solicitado pela produção mas dificilmente capaz de trazer algo mais ao seu filme do que o puro estilo: Michael Bay ("Bad Boys", 1994; "O Rochedo", 1996; "Armageddon", 1998; "Pearl Harbor", 2001), Dominic Sena ("60 Segundos", 2000; "Operação Swordfish", 2001), Simon West ("Fortaleza Voadora", 1997; "Lara Croft: Tomb Raider", 2001; "Chamada de um Estranho", 2006), David McNally ("Kangaroo Jack", 2003).
Com, pelo meio, três cineastas que se destacam do lote pela positiva, como autores de corpo inteiro e que funcionam (mesmo que a um outro nível) como "padrinhos" da actual geração. David Fincher ("Seven - 7 Pecados Mortais", 1995; "O Jogo", 1997; "Clube de Combate", 1999; "Sala de Pânico", 2002), Mark Pellington ("O Suspeito da Rua Arlington", 1998; "A Profecia das Sombras", 2001) e Mark Romanek ("Câmara Indiscreta", 2002) conseguiram integrar forma e função, estilo e conteúdo, superfície e substância numa linguagem própria. No entanto, neles subsiste ainda um cuidado visual, um estetismo impecável que trai por onde tudo começou. Pelo contrário, esta "nova geração" parece sublinhar um qualquer "factor humano", carregando no traço da estranheza, do "frique", do "loser" que se revela ser apenas um ser tão humano como os "normais", talvez um pouco mais sintonizado consigo próprio. E filmando de maneira suja, queimada, irreverente, quase arrojada nessa recusa do limpinho e do certinho - mais um traço que os une a esses "seventies" em que a palavra-chave era "resistência". Sim, há estilo, mas é um estilo tudo menos "estiloso", com um certo ar de carolice improvisada, porque o que interessa é não como as coisas parecem mas sim como elas são.
Nomes: Spike Jonze (telediscos para os Beastie Boys ou Fatboy Slim), surrealismo ancorado na realidade: "Queres Ser John Malkovich?" (1999) e "Inadaptado" (2002) - ou como aprender a viver com quem somos em vez de querermos ser quem não somos. Michel Gondry (telediscos para Björk, Daft Punk, Massive Attack ou White Stripes), "bricolage" visual directamente do subconsciente para o écrã, sem filtros: "Human Nature" (inédito em Portugal, 2001), "O Despertar da Mente" (2004) e "A Ciência dos Sonhos" (2006, a estrear em Novembro) - ou como negociar os obstáculos de um mundo que, sendo o nosso, não é aquele que queremos. Jonathan Glazer (telediscos para Radiohead, Massive Attack ou Blur), elegância inquieta e ansiosa: "Sexy Beast" (2000, inédito em Portugal) e "Birth - o Mistério" (2004) - ou como aprender a viver quando o passado que queríamos esquecer nos apanha. Mike Mills (telediscos para Air ou R. E. M.), melancolia intrigada: "Chupa no Dedo" (2004) - ou como aprender a crescer com quem somos, subvertendo o habitual romance iniciático. Dayton/Faris (telediscos para os Smashing Pumpkins ou Red Hot Chili Peppers), observação curiosa e compreensiva, mas sem julgamento: "Uma Família à Beira de um Ataque de Nervos" (2006) - ou como aprender a viver com a família que não pedimos para ter, com o presente que nunca sonhámos que fosse o nosso.
É verdade que em nenhum momento nenhum destes nomes se reivindicou parte de uma "classe" ou de uma "geração". Mas isso não diminui a aparente "sincronicidade" que os vê explorarem atitudes, abordagens, percursos semelhantes e que é algo de indelevelmente geracional. Sintomático também das novas relações com Hollywood é o facto de todos eles chegarem à longa com produções independentes de relativa modéstia de orçamento, mas de todos já terem chegado à "segunda divisão" que são as marcas especializadas das "majors" (Dayton/Faris na Fox Searchlight, Mills na Sony Classics, Gondry na Warner Independent). Como quem diz que está aqui a servir de "academia" para o que há-de vir. Mesmo sabendo muito bem que dificilmente estas sensibilidades serão capazes de assinar um filme mais conformado ao "mainstream" - mas a verdade é que, muitas vezes, é o "mainstream" que agarra as margens. Não foi isso o que aconteceu nos "seventies" que quase todos erguem a modelo?