A vacilação no livro é perceptível, e é isso que torna o trabalho de Bamberger singular: apesar do privilegiado acesso que o autor teve ao realizador - que compreensivelmente se sentiu bem na pele de objecto de atenção -, a hagiografia não é o horizonte. Pelo contrário: Bamberger também começa a duvidar (de Shyamalan ou do projecto?) ao tirar o retrato a este visionário cheio de dúvidas durante o turbulento processo com um estúdio que também duvidava do projecto que tinha em mãos.
Disney, o estúdio que negou ao realizador de "O Sexto Sentido" a possibilidade de fazer como ele queria "A Senhora da Água", como o exemplo do "entertainment" nivelador que recusa o risco e a individualidade? Essa pode ser uma expectativa inicial de leitura: um duelo Arte vs. Indústria. Mas é logo uma oposição deslocada tratando-se, como se trata, de alguém cuja obra ambiciona ocupar ambos os espaços como é o caso da obra de Shyamalan. E depois, tal como Bamberger progride no conhecimento do artista, assim também vamos conhecendo os executivos da indústria e as suas razões. E se a forma como eles aparecem não é propriamente da ordem da revelação e se não se carimba "o rei vai nu" - o artista, isto é -, é provável que se chegue ao final de "The Man Who Heard Voices" com o sentimento de que também começamos a ver coisas. Isto é: a ver melhor. (Ou a confirmar o que já se suspeitava?) Hipótese, então: como se, inesperadamente, na ficção ("A Senhora do Lago") tivesse ficado registado um documentário sobre o seu realizador, tal como ele foi retratado no livro ("The Man Who Heard Voices"), e que o livro ajuda a revelar. Isto está no filme, isto está no livro...
Shyamalan a tentar quebrar com a precisão matemática dos seus filmes anteriores, aproveitando o caos e a excentricidade trazidos pelo director de fotografia Chris Doyle (o homem da obra de Wong Kar-wai). "A Senhora da Água" é, provavelmente, o filme mais "experimental" do cineasta, pela forma como experimenta com a escala, como povoa os planos, os desfoques. Mas... não é certo é que M. Night Shyamalan tenha controlado Chris Doyle (o seu alcoolismo, a sua imprevisibilidade...), o que não é certo é que tenha abraçado de forma consequente a sua pulsão de mudança.
O humor, arriscando pelo descontrole do burlesco - aí "A Senhora da Água" é como "Sinais" - faz bem ao cinema de Shyamalan. Humaniza-o. Mas, tal como "Sinais" (só que agora o caso é mais grave), "A Senhora da Água" expõe dificuldades. Na figuração: os extraterrestres daquele, os monstros deste. Shyamalan, um visionário em apuros: inseguro, inconstante (assim é retratado no livro), perseguido por uma angústia secreta. Um segredo? Como só ele soubesse: se calhar há ali, no mistério de que se faz rodear, na excentricidade trabalhada, menos do que os seus olhos esbugalhados querem mostrar. E menos do que se diz. Esse estar em perda - essa dificuldade de o imaginário voar, essa ausência de grandeza -, está em todos os filmes do realizador.
Mesmo nos mais interessantes. Por isso, "A Senhora da Água" não é só um caso problemático (isso, todos os grandes o têm, um dia ou outro). Não, é a revelação de uma verdade. Com o seu quê de "hara-kiri". Sobre este filme M. Night Shyamalan disse: quis fazer o seu "ET".