Al Gore: o profeta ambiental

A América divide-se em duas grandes facções, no que diz respeito às alterações climáticas: por um lado, há os que consideram que os receios sobre o aquecimento do planeta são "uma das maiores fraudes de todos os tempos", como James Inhofe, secretário do comité para o Ambiente do Senado. E há outros que começam a encarar a preservação do ambiente como um imperativo moral, como os fiéis de muitas igrejas evangélicas que estão a criar uma aliança inédita com os ambientalistas. É a estes que pisca o olho Al Gore, que perdeu as eleições de 2000 para George W. Bush.

É como um homem com uma missão que Gore se apresenta, no filme, que esta semana se estreia, e no livro do mesmo nome (que será editado em Portugal pela Esfera do Caos), como alguém que percebeu que há coisas mais importantes do que ser político e ganhar eleições. "A minha esperança é que aqueles que lerem o livro e virem o filme comecem a sentir, como eu sinto há muito tempo, que o aquecimento global não tem só a ver com a ciência, e não é apenas um tema de política. É na verdade um assunto de moral."

O apelo a fazer a coisa certa, a agir como dita a moral, vai de encontro aos sentimentos que moldam a América, fundada por emigrantes que procuravam a liberdade para seguirem a religião que praticavam. A religião, em particular as diferentes denominações evangélicas, têm um grande poder para moldar a política nos Estados Unidos. Gore não o ignora, e tenta aproximar-se destes cidadãos. O momento é propício: algumas igrejas evangélicas estão a começar a forjar uma aliança inédita com os ambientalistas - dois sectores da sociedade normalmente divididos por temas fracturantes como o aborto. No início do ano, 86 líderes de igrejas evangélicas assinaram um documento, denominado Iniciativa Evangélica para o Clima. "Há cada vez mais evangélicos a acreditar que cuidar da criação é uma parte integral da sua missão como cristãos. É algo que se está a tornar parte da sua fé", disse à agência AP Melagne Griffin, da organização ambientalista Sierra Club e ela própria cristã evangélica.

Gore apresenta o que a ciência aprendeu sobre o instável equilíbrio do clima na Terra, mas fala da crise ambiental como uma oportunidade que "poucas gerações ao longo da história tiveram o privilégio de conhecer: uma missão geracional; a satisfação de perseguir um imperativo moral; uma causa partilhada e unificadora; o entusiasmo de ser forçado pelas circunstâncias a pôr de lado as pequenas diferenças e conflitos que tantas vezes sufocam a necessidade humana de transcendência."

Para outros, entre imagens de glaciares a derreter, da destruição provocada pelo furacão Katrina ou da icónica imagem dos barcos naufragados num oceano de areia no Mar de Aral, fala da necessidade de cada um contribuir com a sua pequena parte para o bem comum e a sobrevivência da Terra com um discurso que lembra Martin Luther King e a defesa dos direitos civis nos Estados Unidos nos anos 60: "Este é um momento moral, uma encruzilhada. Não é sobre uma discussão científica ou diálogo político. É sobre quem somos como seres humanos." Nas palavras de King, recorda Gore, "O dia de amanhã é já hoje."

clima favorável. É inegável que a América de hoje já não é bem a mesma que aceitou que um dos primeiros actos com repercussão mundial de George W. Bush, o rival que derrotou Gore, foi afirmar, em 2001, que os EUA não iam ratificar o Protocolo de Quioto (em cujas negociações Al Gore, então vice-presidente dos EUA, desempenhou um papel importante).

É certo que há pessoas como James Inhofe, que convocou vários cientistas para testemunhar no Senado sobre a veracidade dos estudos que mostram que a temperatura subiu em flecha nas últimas décadas. E que na cultura popular vingam livros como "State of Fear", o último de Michael Crichton, que apresenta o discurso sobre as alterações climáticas como uma arma de grupos terroristas (conta a revista "New Yorker" que Bush leu o livro e gostou tanto que convidou Crichton para a Casa Branca, para partilhar ideias).

Mas esta é apenas metade da história da América. A outra pode ser ilustrada por Arnold Schwarzenegger, o governador republicano da Califórnia, que nos últimos dias de Agosto anunciou um acordo com a oposição democrata para aprovar legislação que porá em prática um sistema de controlo das emissões de dióxido de carbono para atingir uma redução de 25 por cento até 2020. No ano passado, um grupo de estados do Nordeste tinha também já tomado a iniciativa de conceber medidas para reduzir os efeitos das emissões de gases com efeito de estufa A atitude pró-ambiente de Scharzenegger está a tornar-se mais comum no resto da América, sublinhava a revista "The Economist" na semana passada, num dossier especial sobre as alterações climáticas. Estão a juntar-se pela protecção do ambiente grupos e pessoas que, fora isso, nada têm em comum, disse a esta revista britânica James Woolsey, ex-director da CIA, que guia um Toyota Prius (um carro híbrido, a gasolina e eléctrico).

Os caçadores, por exemplo, estão a ganhar nova consciência ambiental: numa sondagem feita em Maio, 76 por cento dos caçadores disse ter experiência própria dos efeitos das alterações climáticas, e 78 por cento considerou que a melhor forma de satisfazer as necessidades energéticas da América era conservando mais, desenvolvendo veículos mais eficientes e usando mais energias renováveis. Os primeiros passos tinham já sido dados.

Pelo "mayor" da cidade de Seattle, por exemplo, que em Fevereiro de 2005, quando o Protocolo de Quioto entrou em vigor, depois de ter sido ratificado por 164 países, lançou uma proposta para pôr em prática as medidas que recomendava em todas as cidades dos Estados Unidos. O acordo não é vinculativo, mas 279 cidades norte-americanas responderam ao apelo do "mayor" Greg Nickels de mostrar que o aquecimento do planeta é um assunto global, mas também local.

Factor importante neste início de viragem da atitude dos americanos face ao ambiente foi o furacão Katrina, no Verão passado, que fez com que se rompessem os diques que protegiam a cidade de New Orleans. As imagens de cidadãos abandonados à sua sorte na cheia, durante dias, sem que as autoridades agissem, fizeram com que muitos pensassem que aquilo devia ser o que os cientistas diziam quando alertavam para a possibilidade de as alterações climáticas tornarem frequentes fenómenos meteorológicos extremos e também que pusessem em causa o governo.

É deste ambiente de apelo à iniciativa pessoal (como dizia o tema de capa de uma das edições de Março da revista "Time", "não tem de esperar que Washington lhe diga para reduzir as emissões") que Gore pode tirar proveito. Talvez o clima político não seja tão favorável aos temas ambientais desde o início dos anos 70, quando Richard Nixon criou a Agência de Protecção do Ambiente, em resposta ao forte movimento ambientalista e movimentações de cidadãos contra a poluição. Resta agora saber se Al Gore quer mesmo e sabe aproveitar a crista da onda.

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