1.De onde chega este filme? Há os sinais de identificação; intitula-se Profissão: Repórter ou, originalmente, The Passenger, e foi realizado em 1975 por Michelangelo Antonioni, sendo que no entanto prevaleceu um entendimento de que na obra daquele seria pelo menos parcialmente alienígena. Mas perguntar "de onde chega este filme?" implica os concretos sinais e os quadros de entendimento que implicam. O elemento de reconhecimento mais imediato e proeminente, a presença de Jack Nicholson, é também aquele que de modo patente estabelece o diferencial do tempo.
É um Jack Nicholson relativamente jovem e, poderemos entender, também surpreendente. Tão insistentes são os seus shows de cabotinismo que teremos tendência a esquecer que foi o espantoso actor de Chinatown e The Passenger, antes da apoteose histrónica de Voando Sobre um Ninho de Cucos e, com essa, a sua transformação num maquinismo de esgares.O parágrafo anterior supõe uma daquelas evidências que de tão óbvias se vão dissipando na experiência cinematográfica, a saber, que vamos também acompanhando como espectadores a passagem do tempo nos os seres que habitam os filmes, nos actores. Mas, do mesmo modo, sendo essa experiência parte das nossas existências, o confronto com uma obra que perante nós regressa após muitos anos implica também o nosso próprio diferencial de tempo; o filme até é materialmente o mesmo, eu até sou um espectador que o viu quando da estreia, mas entretanto houve o meu próprio tempo transcorrido e o filme interpela-me de modo muito diferente.
Isto para referir também os dois tópicos a que Profissão: Repórter veio sendo restringido: o extraordinário e celebérrimo dito "último plano", que de facto até é o penúltimo, que se tornou equiparado à abertura de A Sede do Mal de Orson Welles como os dois mais célebres planos-sequências da história do cinema; a tal circunstância "alienígena", que tanto o seria quanto não se tratava de um projecto original de Antonioni, mas de um para que foi solicitado - e quanto a isso importa diisipar um preconceito.
Conhecemos um número considerável de argumentos não-realizados de Antonioni, e até há um conjunto desses publicados em português: Os Filmes na Gaveta (Edições 70). Um outro, capital e que esteve à beira de arrancar, foi Tecnicamente Doce. The Passenger acabou por substituir esse outro, e há numeros elementos daquele argumento original de Antonioni incorporados neste filme.
Já agora também estranho que se ignore os argumentistas, sendo que Mark Peploe e Peter Wollen não são propriamente anónimos, e que o segundo é até um influente teórico, aliás também traduzido em português (Signos e Significação no Cinema, Livros Horizonte). The Passenger não era um projecto alheio para que Antonioni foi solicitado mas, não sendo originalmente dele, foi construído para ele, dando-se a circunstância de Nicholson estar interessado em fazer um filme com ele, e um projecto que, como se tentará explicitar, se materializou num filme plenamente antonioniano.
2. Tomemos como premissa que o título deste filme é "Profissão: Repórter", a sua designação na Europa Continental. Antes houvera Blow Up e o fotógrafo, depois haveria A Identificação de Uma Mulher por um realizador - e David Locke, a personagem de Nicholson, é-nos apresentado como jornalista televisivo. O fotógrafo, o repórter e o realizador procuram ver e dar a ver, e de um ou outro modo, em qualquer dos filmes, estabelece-se um diferencial entre o que eles são supostos ter dado a ver e o modo como a matéria e as acções presumivelmente olhadas se vêm implicar neles próprios. Em qualquer caso, indagam.
A inquieta indagação do olhar de Antonioni foi ao longo de décadas um sismógrafo de sensibilidades, delineando topografias não apenas imediatamente de reconhecimento de espaços no tempo, mas mais do que isso, de imaginários. Michelangelo Antonioni é um dos nomes maiores da arte cinematográfica e a sua obra é também, como por certo com muitos poucos outros cineastas, uma sucessão e acumulação de sedimentos do tempo que a torna igualmente em matéria privilegiada de história cultural.Profissão: Repórter é um relevante título de um percurso e de um estatuto tão magnificamente de "Condição: Cineasta".
3. Tomemos como premissa o título original, "The Passenger". A indagação começa com o género indefinido: "o passageiro", David Locke, ou a sua pendura, a personagem de Maria Schneider, sendo que nunca ocorre "a identificação desta mulher"? E se há uma ausência de identificação, há também um desdobramento de identidade: David Locke toma o lugar do morto, de David Robertson, para vir a descobrir que não se libertou do fardo da sua existência, de David 1, pelos retornos àquela suscitados pela vertigem em que se descobre na sua presumida nova existência, de David 2. Ele é o passageiro de uma outra identidade.
Esse filme emblemático de Antonioni que foi A Aventura tinha como pretexto um desaparecimento e em A Identificação de Uma Mulher, o filme que por cinscunstâncias de saúde conhecidas concluiu o seu labor em continuidade (e do qual sucedeu ele próprio dizer que queria que fosse o último dos filmes "antonionianos"), as mulheres são de facto duas, a primeira a certa altura desaparecendo do filme e a outra aparecendo.
Poderá dizer-se, e é notório, que as "peripécias da acção", são neste filme bem diferentes da maior abstracção de outros, e que The Passenger não deixa de ser integrável no quadro de um género do cinema americano, o thriller. Houve comentários que salientaram algumas sugestões hitchcokianas. Por exemplo, no Y, escreveu Luis Miguel Oliveira que o filme "não é hitchcockiano mas, nos padrões do cinema de Antonioni, é o que há de mais parecido com um filme de acção". Indo ao âmago das obras, diria eu que, de certa maneira, The Passenger é o mais hitchcockiano dos filmes realizados por outrem (não certamente os nefandos "pastiches" de De Palma). Então a reabilitação crítica de "Hitch" nos anos 50 pôs nomeadamente em realce a questão da "transferência" e agora iríamo-nos esquecer disso? Parece-me que se impõe um paralelismo entre O Desconhecido do Norte Expresso e The Passenger, como já agora, em jeito de exercício teórico, também posso imaginar que Vertigo, que em português tem o título talvez demasiado preciso mas tão sugestivo de A Mulher que Viveu Duas Vezes, é o filme de Hitchcock mais susceptível de ser "antonioniano".
O que quero sugerir é que para além de aspectos anedóticos, esta inusitada similitude é uma porta de passagem para duas concepções tão absolutamente marcantes, que são daquelas que nas suas presenças manifestas nos permitem supor "Hitchcock ou o cinema" ou "Antonioni ou o cinema", como muitas poucas outras há.
São de algum modo paradigmas dos dois modos considerados por Gilles Deleuze na sua obra fundamental, agora enfim disponível em português com tradução de Rafael Godino na Assírio & Alvim: O Cinema I - A Imagem-Movimento e O Cinema II - A Imagem - Tempo. Se Hitchcock é paradigma da primeira concepção, Antonioni é precisamente um dos exemplos de passagem, "para além da imagem-movimento". Deleuze recorda aliás como de O Eclipse a Profissão: Repórter o desaparecimento (pontual) se torna ausência (condição), como as personagens "sofrem menos da ausência de um outro do que de uma ausência a elas próprias " (e é ver o olhar ausente e perdido de David/Nicholson), e que "para Antonioni, não há outra doença senão crónica, Chronos é a própria doença".
Antonioni é um extraordinário construtor. Nada tem de fortuito que a passagem por Barcelona tenha como roteiro a arquitectura de Gaudi. Ele é com Fritz Lang um dos dois autores em que são mais presentes as homologias do cinema e da arquitectura como imaginação dos espaços e dos lugares, de pensar os modos de "habitar", mesmo quando, nas declinações das personagens no tempo, alguém como David se torna incapaz de precisamente "habitar".
Sempre falámos e falamos do final e do plano-sequência de sete minutos que começa num espaço interior, passa para o exterior e ao quarto interior retorna. Dou-me conta agora que não menos importante é a cena precedente em que David interroga a rapariga sobre o que ela vê, e depois conta ele a história do cego que recuperou a visão, descobriu os rostos e as cores, mas depois também a sujidade, ficou com medo e enfim matou-se. O final de Profissão: Repórter não é apenas esse plano sequência que é dos momentos antológicos da arte cinematográfica, é também um horizonte-limite e ontológico do jogo das identidades no tempo do cinema.
Quando vemos um filme, aquele tempo foi, reforçadamente num caso de um filme realizado há trinta anos. E isso, que pode ser magnífico, e é no caso, é também perturbante - é a um tempo que eventualmente foi também do nosso passado que somos convocados, e perante nós passam os fantasmas, em espiral, "vertigo".Creio agora firmemente que este é um filme extraordinário, dos mais assombrosos.