Uma certa inquietude

O filme desenha um círculo bastante vasto e temos dificuldade em definir-lhe um centro preciso. Mas não nos enganaremos muito se o localizarmos em torno da personagem de Leonor Silveira (e também não nos enganaremos muito se dissermos que se trata da sua mais extraordinária presença, mais ainda do que em "Os Canibais" ou em "Vale Abraão"), uma aristocrata que vive duas obsessões: sendo rica, preocupa-a a reflexão sobre "a alma dos ricos", o modo como uma "alma rica" pode ou não aceder ao divino, e como uma alma assim é vista aos olhos de Deus; sendo crente, inquieta-a a falta de manifestação do divino, e o seu mais profundo desejo é o de assistir a uma aparição de Nossa Senhora.

À medida que Manoel de Oliveira vai deixando estas obsessões (e sobretudo a segunda) ocuparem o espaço privilegiado do filme, a ponto de todas as outras personagens mais não serem nem poderem ser, no fundo, do que as testemunhas da devoção de Alfreda (assim se chama a personagem de Leonor Silveira), a gravidade de "Espelho Mágico" vai aumentando. Se há uma dimensão irrisória, mesmo de alguma mordacidade, em todo o filme, mormente nos diálogos, há uma dúvida (legítima, acreditamos) que pode ficar no espírito do espectador: qual das faces da moeda, a farsa ou a tragédia, está voltada para cima? É a primeira coisa que perguntamos a Manoel de Oliveira: "Não acho que seja uma farsa. Acho que é sobretudo uma tragédia". Insistimos, inquirindo se as duas coisas são forçosamente incompatíveis, e se não acha que muitas vezes a diferença entre a farsa e a tragédia é uma questão de ponto de vista. "É irónico, é provocante. Não é uma coisa rígida e definida, exactamente como na vida onde também as coisas não são rigidamente definidas. As pessoas riem-se, mas não se riem do religioso, não se riem de quem é crente." E explica melhor porque fala em tragédia, e de que tragédia fala exactamente: "A virgem não tem que aparecer. Já apareceu há oitenta e tal anos. Aparece ou não aparece, mas nunca é por vontade dos homens. O excesso de vontade de que ela apareça é que é uma tragédia". Uma tragédia, precisa, "para aquela senhora. E uma tragédia que pode ser irónica, porque há outras que não podem".

A religião é uma presença recorrente no cinema de Manoel de Oliveira. "Espelho Mágico", em particular, oferece-se a ser descrito como um filme de reflexão religiosa, se não mesmo "teológica" (longas conversas e discussões). Mas descreveria o cineasta o seu cinema, ou este filme especificamente, como um filme religioso? "Quando convoco o religioso não posso deixar de o tratar como tal. Não quer dizer que eu seja religioso. Também não quer dizer que eu seja ateu. Não quer dizer nem uma coisa nem outra. É como um actor: pode fazer o papel de um santo ou de um assassino, e não é uma coisa nem outra, é um actor". Insistimos no tema, lembrando que a representação do religioso e do sagrado parece ser uma preocupação antiga, havendo mesmo um filme (um dos seus mais célebres e importantes, "Acto da Primavera") inteiramente dedicado a essa questão - e em "Espelho Mágico" há uma personagem, a de Leonor Baldaque, que no fundo se vê na pele de uma actriz a quem dado o papel de representar uma falsa Nossa Senhora.

Oliveira prefere falar de "Acto da Primavera" como reconstituição: "No "Acto da Primavera" a representação é história. Aquilo é história, aconteceu há dois mil anos, Cristo existiu, Maria Madalena existiu, Cristo foi crucificado. Agora se as pessoas crêem ou não crêem é outra questão." E acrescenta: "Eu sou um homem de dúvida". O que torna fácil chegar à conclusão de que a personagem de Leonor Silveira "não tem nada a ver" com ele: "É uma criação da Agustina, é sobretudo uma maneira de focar assuntos religiosos, é uma maneira de inquietude: se há Deus, por que não aparece?" Partilhará Manoel de Oliveira essa "maneira de inquietude"? "Nunca me senti propriamente no confessionário. Tento realizar bem os meus filmes, mas não tenho necessariamente uma relação pessoal com o que lá está. Não faço autobiografia".

Há em "Espelho Mágico" uma sequência estarrecedora: um longo "travelling" em Veneza, aparentemente dividido em dois planos que se vêem como se fosse um só, numa perspectiva que corresponde ao ponto de vista da moribunda Alfreda, transportada numa liteira - uma espécie de "contra-picado subjectivo em movimento" que rompe toda a "gramática" do filme (tal como já antes o fizera um plano em "ralenti", procedimento raríssimo em Oliveira), e cuja beleza só tem par num plano análogo que Frank Borzage inventou no seu "A Farewell to Arms" (1932). Não foi, para Oliveira, "um plano mais difícil do que os outros". Aliás, "não há planos fáceis, e os que parecem fáceis muitas vezes acabam por ser difíceis".

Outro elemento fundamental no clima de "Espelho Mágico" é a selecção musical, em particular a utilização do "Carnaval dos Animais" de Saint-Saens como perturbante pontuação. Intuição pura e simples, diz o realizador: "Escolhi-a porque me caiu no goto, achei que se ajustava". E os actores? "Espelho Mágico" traz uma galeria completíssima de "oliveirianos" regulares ou ocasionais. Como se dirige uma orquestra de actores assim? As flutuações de registo entre eles são estimuladas ou procuradas? "Escolho os meus actores em primeiro lugar porque são bons actores. E não gosto de me meter no trabalho deles, não os inundo de indicações. Limito-me a dar-lhes marcações. Os actores são inteligentes, percebem o texto, percebem as personagens, e sabem o que têm que fazer".

Sugerir correcção
Comentar