Na década de 90, a de "ressurreição" de Oliveira, avultam três grandes capítulos da sua colaboração conjunta: "Vale Abraão" (1993) é fruto da encomenda de uma Madame Bovary duriense, para servir de motivo a uma adaptação parcelar e selectiva, em que as inflexões do enredo não anulam a omnipresença da palavra de Agustina, em território que ambos conhecem bem; "O Convento" (1995) surge, no diálogo entre os dois criadores, como o momento da divergência - Oliveira autonomiza-se e distancia-se, uma vez que, nesta variação sobre temas fáusticos, pouco fica da essência do romance original, "As Terras do Risco"; em "Party" (1996), com diálogos de Agustina, assiste-se à pulverização progressiva do acessório, em artificioso jogo de escondidas, destinado a revelar a configuração do sedutor seduzido, que, ainda segundo a lógica aforística da romancista, conspira contra a ordem das coisas.
Passando embora por cima de "Inquietude" (1998), com apenas um dos episódios, o terceiro, baseado em "A Mãe de um Rio", Oliveira regressa, em pleno, a Agustina em "O Princípio da Incerteza" (2002), adoptando a designação genérica para uma trilogia, mas realmente partindo de "A Jóia de Família", o seu primeiro tomo: centrado num "fait divers", o filme revisitava território reconhecível, com personagens vulneráveis e uma modernização de conflitos universais, estabelecendo inclusive uma rede complexa de relações entre actores "fetiche" - Leonor Silveira que vinha desde "Os Canibais" (1988), Isabel Ruth, presença subliminar de condutora da acção, da muda de "Vale Abraão" à vendedeira de tremoços em "A Caixa" (1994), e, sobretudo, os "descendentes reais" dos criadores, Leonor Baldaque (neta de Agustina) e Ricardo Trêpa (neto de Oliveira).
Este último, também protagonista do regresso a outro dos essenciais vectores culturais oliveirianos, José Régio, em "O Quinto Império" (2004), transita para "Espelho Mágico", adaptação do terceiro tomo da citada trilogia, "A Alma dos Ricos", repegando na personagem, José Luciano, o "Touro Azul", saído da prisão em que entrara no filme anterior, como se a elisão do livro intermédio, "Os Espaços em Branco", fizesse total sentido, numa economia fílmica, empenhada mais em sintetizar do que em pormenorizar.
Se insistimos nesta longa introdução "genealógica" é porque nos parece crucial dar conta desta complicada tessitura de remissões e de rimas internas, fazendo de cada filme de Oliveira, "adaptado" ou não de Agustina, peça de um intricado "puzzle" que é a sua obra.
"O Espelho Mágico" - aqui a mudança de título é fundamental - reflecte assim inflexões mínimas, na medida em que refracta o real transformado pela ficções em fingimentos novos, que se perpetuam "ad infinitum": Leonor Silveira (ainda e sempre o "pivot" da acção interior de interrogar a essência do mundo diegético de Oliveira, em prodigiosa contenção) e Leonor Baldaque voltam em personagens novas, que se perfilam como prolongamentos de outras que apenas se citam, num jogos de "espelhos mágicos", ocultando (e revelando) paradoxais paralelismos.
No entanto, o mais fascinante deste exercício mais-que-perfeito de repetição pelo avanço e pela novidade passa pela adopção do tom de farsa trágica, com a religiosidade de uma protagonista obcecada por um misticismo irrisório e desarmante - Nossa Senhora era ou não abastada, há ou não nos ricos uma predisposição para a santidade... Eis senão quando entrevemos uma outra rima interna com a comédia de costumes burgueses do Oliveira de antes de Agustina e não podemos evitar a correspondência com "O Passado e o Presente" (1971), extraordinário jogo quase buñueliano de sentimentais massacres.
Por isso, a personagem interpretada por Duarte de Almeida/João Bénard da Costa, aparece, frágil e envelhecido, como um dos cernes de impossível ligação com o passado, fechado na sua obsessão musical e concentrado numa ternura infértil de protector do (agora desajustado) eterno feminino, como se a farsa repousasse, tantos anos depois, não nas traições adulterinas, mas nas fidelidades patéticas de um mundo em que o sexo e o prazer passassem pelo êxtase místico, de inspiração barroca, e pela meditação filosófica sobre impotências ancestrais. A figura da religiosa (fabuloso pretexto para encenar o belíssimo som do castelhano na voz almodovariana de Marisa Paredes) encaixa neste concêntrico aparato de caixas chinesas; e o "cameo" de Michel Piccoli remete para uma religiosidade heterodoxa de incidências (quase) sacrílegas.
Neste contexto, o aparente protagonista, o "Touro Azul", herdado do filme (e romance) anterior, perde a sua função e ganha a de condutor de almas em suplício interior, de "narrador" de uma diegese impossível, coroada com a morte da rica senhora digna, projectada num espelho de mil faces e pulverizada em partículas da sua própria improbabilidade, como uma Alice aprisionada nos seus privilégios de classe e nas suas contradições de religiosidade passada. O mundo de "Espelho Mágico" esgota-se em miragens salvadoras de uma burguesia rural, encarcerada numa casa de brasileiro, ela própria sinal de inadequação ao tempo e perdida num sem tempo de fim de mundo e de raça, sem descendência à vista. O charme deste simulacro de teatro do mundo resume-se, pois, à sobrevivência exacerbada de sentimentos excessivos e à "blasfematória" encenação da aparição da virgem, "inventada" por um falsário de pacotilha que acaba por apaixonar-se pela sua "divina" Galateia.
Tudo é apenas fingimento, substituição, "ersatz" de uma essencialidade perdida para sempre. Oliveira renova-se, permanecendo, genialmente, encerrado na sua coerência absoluta.