Deixando para trás o que pode haver de anedótico na inventariação (ainda por cima tudo isto deve ser sujeito a confirmação...), com isto quer enfatizar-se o seguinte: que "Match Point" é coisa de uma relevância "diferente" a surgir na obra de um cineasta que no dia 1 de Dezembro de 2006 fará 70 anos; de um cineasta que em tempos já foi ícone cultural nova-iorquino (e não só...), estatuto que já viu melhores dias; de um cineasta que praticamente está reduzido a um nicho cada vez mais pequeno de público nos seus Estados Unidos ("Ana e as Suas Irmãs", de 1986, continua a ser o seu maior sucesso - 40 milhões de dólares nas bilheteiras, mas com dificuldade um filme de Allen chega hoje aos 5 milhões), onde nem a crítica, nem mesmo a nova-iorquina que fez desde o início o trabalho de recepção à obra, lhe continua a ser fiel (até na Europa já há desistentes); finalmente, de um cineasta a quem os estúdios americanos antes se limitavam a dizer "sim" sem sequer abrir as páginas do argumento, mas que hoje se tornaram frios, demasiado frios (para além de já quererem ler o argumento), que Woody Allen teve de se "exilar" na Europa - "Match Point" é um filme londrino, e seguir-se-á outro, "Scoop", já realizado na capital britânica.
"Match Point" é uma coisa diferente num contexto de rotina, de inconsequência e até de alguma irrelevância que tem sido a obra de Woody Allen do final dos anos 90 até agora. Para pôr os pontos nos is: o último grande filme do cineasta, "As Faces de Harry", data de 1997; o filme anterior a "Match Point", "Melinda e Melinda" (2004), é um dos seus pontos mais baixos.
Razões para a queda? O crítico Peter Biskind, analisa-as num notável perfil do realizador que fez para a revista "Vanity Fair", e faz sentido resumir aqui e assim: o "caso" Mia Farrow, que aconteceu em 1992, não "bateu" logo, claro que não, porque ainda houve o violentíssimo e magnífico "Maridos e Mulheres" e o divertidíssimo "Balas sobre a Broadway"... Se teve consequências imediatas foi para alguns espectadores, que se sentiram "traídos".
Mas a verdade é que foi desgastando progressivamente o homem e a obra, que aos poucos, como se em Woody se revelasse o cansaço emocional da contenda, foi abandonando a "gravitas" do drama e ancorando na rotina - Woody é o primeiro a dizer que a comédia lhe é mais fácil de fazer, ou que a comédia é aquilo que todos esperam que ele faça.
Tudo isto para chegar aqui: "Match Point" é o melhor filme de Woody Allen em uma década.
Revela uma garra de jogo, uma intencionalidade e uma firmeza de passes curtos - isto é, ideias de "mise-en-scène" - que já não se esperava de quem parecia degastado pela rotina. E que não são habituais num cineasta com a idade dele - pensávamos que era isso, a idade, o problema de Allen. Desta vez é a sério. A última vez que Woody Allen não teve medo da gravidade aconteceu com "Crimes e Escapadelas", e isso foi há muito, muito tempo, em 1989.
encontro de iguais.A culpa - desta garra - deve-se também a Londres. Dificilmente na América os labirintos da ascensão e os abismos da queda social seriam assim tão naturais, tão evidentes ou tão marcantes como as redes que delimitam o campo de ténis de um exclusivo clube na capital londrina. E dificilmente marcariam com crispação "Match Point".
É já do lado de lá da rede que começamos por ver Chris (Jonathan Rhys-Meyers). O percurso de ascensão deste instrutor de ténis ainda vai no início. Irlandês, há algo nele de escorregadio, de sinuoso. Inocente ou culpado? Nunca esconde de onde veio: das classes pobres. Mas isso também pode ser uma forma de se proteger em relação a suspeitas sobre o lugar para onde vai: como se quisesse mostrar que não tem nada a esconder.
Portanto, desde o início Chris é inocente e é culpado, simultaneamente (no início vêmo-lo a ler "Crime e Castigo", de Dostoievski - Strindberg também é chamado à citação -, largando o primeiro volume para se precipitar para o segundo, num misto de curiosidade e de antecipação em relação ao seu destino, o que nos deve preparar logo para a coisa tenebrosa que virá mais para o fim).
Nunca suprime os sinais da sua classe, não; mas Chris quer subir. E quando conhece a família Hewett, e os camarotes das óperas, tudo se torna favorável: Chloe Hewett, a filha de família, apaixona-se por ele.
E tudo se complica: Chris conhece, tal e qual um daqueles momentos funestos e fatais de um "film noir" dos anos 40 (mas é a ópera que se vai continuar a ouvir-se), Nola (Scarlett Johansson), americana em Londres, pretendente a actriz, namorada do menino Hewett e, tal como Chris, uma "outsider" - já agora, é um momento de antologia, pelo menos para o álbum de recordações da obra de Scarlett, aquele diálogo sobre jogadas agressivas e sobre quem bate mais forte. E já agora também: a Londres se podem atribuir algumas das "culpas" de "Match Point", mas sem querer inventar uma "musa" onde ela não existe, essas "culpas" têm que ser divididas com Scarlett...
É este encontro de iguais que vai lançar "Match Point" para os abismos do "thriller" moral. Amor e morte, literalmente - antes disso, o sexo, e (tudo isto devia também ser sujeito a confirmação) nunca antes Woody Allen foi assim tão carnal, não há paralelo na sua obra daquele momento dos amantes à chuva.
Mas a questão é esta: Chris é um não-crente e é um niilista. Na obra de Woody Allen lembramo-nos de outro assim, alguém que não acredita numa ordem superior das coisas, nessa coisa chamada moral, e que no caos que é a realidade só conta com uma coisa chamada sorte, e de tudo o resto se desembaraça.
Chamava-se Judah (Martin Landau), e era uma das personagens de "Crimes e Escapadelas", filme de que "Match Point" é uma "versão júnior" (dizemos assim devido à idade dos protagonistas). Pelo menos é uma versão de uma das suas partes, já que se "Crimes e Escapadelas" tinha uma história trágica, a de Martin Landau e Angelica Huston, a amante, também tinha uma história cómica, protagonizada por Allen e Mia Farrow (Uma diferença: "Crimes e Escapadelas" tinha um lado expositivo de "tratado moral"; "Match Point" - sem que a gravidade se desprenda dele, antes pelo contrário - está implicado na ideia de jogo, faceta a que poderíamos chamar lúdica se os mecanismos não fossem aqui tão implacáveis).
Para quem pensa assim, para quem pensa que tudo depende apenas do lado para onde cai a bola quando bate na rede, Nola, o amor, é um embaraço. A ópera vai ouvir-se cada vez mais, Londres vai-se transformar num cenário de papelão, de máscaras, de jogo e de labirintos, de palacetes onde um par faz a sua dança da morte, uma dança que chega a ser desenfreada, que estrebucha, e finalmente pára para sempre, debaixo dos céus cinzentos da culpa (a América não se prestaria a isto desta maneira, e esse é outro dos golpes da intuição de Allen quando, por questões de financiamento, foi obrigado a mudar o projecto da sua cidade para a capital britânica).
Já tínhamos desistido dele, é verdade...