Segue-se a consequente viagem e, no fim, exactamente no último plano, o homem descobre que ficou encravado no inferno - "mental", claro, como são todos. Jarmusch, o melancólico Jarmusch, desta vez cruza a fronteira e faz de "Flores Partidas" o mais desesperado filme que alguma vez assinou. Evidentemente, referências cada um escolhe as que quiser usar. E o filme até pega, de maneira se calhar um pouco ostensiva, numa referência "clássica": o mito de Don Juan. Bill Murray é um homem chamado Don Johnston (num "gag" confundem-no com o Don Johnson ex- "Miami Vice" e o ex de Melanie Griffith), que nos primeiros planos do filme está enfastiadamente sentado em casa, olhando para um velho Don Juan de cinema que passa na TV (aparentemente é o "The Private Life of Don Juan" de Alexander Korda). É fácil perceber o desenho da personagem: aqui está um homem com uma longa lista de seduções e mulheres deixadas para trás, e chegou um momento em que se vê ao espelho. A última mulher (um quase- "cameo" de Julie Delpy) despede-se no princípio do filme, está farta dele e vai-se embora.
Em "Down By Law" (um Jarmusch de 1986) Tom Waits começava a mexer-se depois de uma igualmente inicial cena de "breakup", bastante mais violenta e "histriónica" ("as botas não, não me atires as botas pela janela!"). Este Don Johnston, que tão rapidamente se resigna à solidão do seu apartamento de luzes sempre apagadas, precisa de mais qualquer coisa para se mexer. Uma carta: uma ex-namorada, que não se identifica, escreve-lhe a dizer que teve um filho dele e nunca lhe disse nada, e avisa-o de que o filho, agora um adolescente, está na altura de querer conhecer o pai. O vizinho de Johnston (Jeffrew Wright), que tem a mania de se armar em detective particular, instiga-o a procurar as mulheres que podiam ter assinado tal carta (isto também se podia chamar "A Letter from Five Wives") e prepara-lhe a viagem ao passado: Don Johnston irá visitar, uma a uma, cinco antigas namoradas.
Se este é o princípio narrativo do filme, é sobretudo o "set up" para a figura essencial de "Flores Partidas", a ideia da "viagem", tanto num sentido metafórico, interior e introspectivo, como em sentido literal, físico e territorial. A "viagem" é uma figura cara a Jarmusch, mesmo quando não se cumpre, mesmo quando existe apenas em desejo e mesmo quando não passa duma errância em circuito fechado.
Jarmusch reconhece que "Flores Partidas" era, no espírito, o filme que sentia mais próximo de uma das suas primeiras obras, "Stranger than Paradise" (1984), mas de alguma maneira, e sem que isso signifique que "Flores Partidas" recorra à citação (directa, pelo menos), este também é um filme por onde passam ecos ("ecos", será mesmo a melhor expressão) do Jarmusch dos anos 80, de "Down by Law" a "Mystery Train" (1989) - o que, num filme que tem por tema a revisão do passado, não deixa de ser um pormenor interessante.
Mas, sendo uma viagem no tempo, a viagem de "Flores Partidas" é igualmente uma viagem no espaço. Johnston vai ao encontro de uma América típica, ou pelo menos habitada por alguns fragmentos de uma mitologia típica, e este encontro com uma América no cruzamento entre as "raízes", a mitologia (ou as imagens que incorporaram a mitologia) e uma espécie de "margem" (a América dos "olvidados"), é outro tema profundamente "jarmuschiano". E julgamos que em grande parte é isso que explica que Johnston, na sua demanda, não se confronte apenas com as ex-namoradas, mas sobretudo se confronte com os "décors" a que elas correspondem - e que são todos diferentes, dos restos de uma mitologia da "small town" a que surge associada a personagem de Sharon Stone (e onde faz um perverso sentido que seja citada a "Lolita") à caricatura brutal da decadência de uma marginalidade "pós-hippie" que acompanha a personagem de Tilda Swinton. E que tem o seu reverso na cena com a namorada que se tornou agente imobiliária e vive num bairro de pré-fabricados assépticos e horrorosos - Jarmusch não está só a interrogar para onde foram "os sonhos da nossa juventude", está também a interrogar que é feito da "América da nossa juventude". E nessa perspectiva encontra a mesma espécie de "fantasma silencioso" que encontrava na Memphis de "Mystery Train", filmada como um museu de cera mitológico, rígido que nem um cadáver. Como aí, "Flores Partidas" também procura uma "imagem", mas encontra-a fragmentada, decomposta, paralisada.
A melancolia de "Flores Partidas" aprofunda-se com esta dimensão, mas não deixa de ser por isso a descrição de um trajecto individual. Bill Murray - verdadeiro actor do "meio do caminho", como vimos no princípio do ano no filme de Wes Anderson - é usado de forma bem menos "clownesca" do que o habitual: é aqui sobretudo um rosto, lacónico, impávido, eternamente à espera de reconhecimento, à espera de reconhecer, elem e de ser reconhecido pelos outros (e é a falta de reconhecimento que o condena ao inferno). E é usado menos como elemento cómico do que como alguém cuja presença suscita expectativas cómicas que ficam quase sempre por confirmar - e nessa décalage entre expectativa e confirmação está porventura o segredo da desconcertante amargura de "Flores Partidas". O filme é dedicado a Jean Eustache, mas, sabendo-se da admiração que Jarmusch tem pelo cinema de Ozu (e pelo de Hou Hsiao-Hsien e Aki Kaurismaki, outros herdeiros de Ozu), não custa encontrar aí outra fórmula - e se calhar a fórmula mais importante - para o espírito de "Flores Partidas": eis o relato de uma "primavera tardia", um encontro fora de tempo com uma esperança em rota de colisão com uma resignação brutal, filmada com a melancolia elegíaca e o falso minimalismo que se podia esperar de um herdeiro de Ozu. A emoção, aqui, é silêncio e transparência. Quem não acredita, veja aqueles três ou quatro planos no cemitério - é preciso partir muita pedra para chegar a tanto com tão pouco. Mas enfim, o cinema é um bocado isso.