Sendo esse o problema a contornar por todas as adaptações cinematográficas de romances de sucesso, é um que tem encontrado resoluções peculiares na transição a fi lme dos popularíssimos romances juvenis de J. K. Rowling, devido a uma contradição insolúvel: de que serve fazer uma adaptação de um livro dirigida àqueles que já o conhecem, se o intuito original de uma adaptação cinematográfi ca é levar o livro a quem não o conhece? A questão é legítima porque, chegados ao quarto episódio da saga Harry Potter, ninguém que não tenha lido os livros ou visto os três filmes anteriores conseguirá perceber o que aqui se passa.
É pena que assim seja, porque, com a saída de Chris Columbus (que realizou os dois primeiros filmes, "Harry Potter e a Pedra Filosofal" e "Harry Potter e a Câmara dos Segredos"), a série subiu de nível. No terceiro filme, "Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban", o mexicano Alfonso Cuarón trocou a excessiva fi - delidade por uma tentativa de atingir o tom e espírito dos livros sem o seguir à letra - opção também aqui feita pelo britânico Mike Newell - e aproximou-se mais daquilo que é estimulante na série: o retrato sem condescendências do que é crescer, contado com certeira pontaria emocional.
De facto, estamos perante um "Bildungsroman" iniciático disfarçado de fantasia adolescente na melhor tradição inglesa: Harry é um adolescente que não pediu o destino que lhe coube em sorte, dá por si confrontado com acontecimentos extraordinários e tem de se aguentar à bronca. E, até "O Prisioneiro de Azkaban", era esse lado mais pessoal que era sacrificado nas adaptações cinematográficas - porque, como sabemos, os dramas intimistas não dão bons espectáculos visuais. Cuarón provou que era possível conciliar ambas as vertentes; Newell ("Quatro Casamentos e um Funeral") tenta-o com menos sucesso, porque nunca escondeu que era o elemento de "thriller" (bem gerido, aliás) que mais lhe interessava neste quarto episódio. A adaptação de Steve Kloves retém a trama central onde Harry dá por si um relutante concorrente ao arriscado Torneio interescolar dos Três Feiticeiros, narrativa que funciona como ponto de partida para o regresso do vilãomor Lord Voldemort, e ejecta ou condensa brutalmente tudo o resto.
Por relação a Cuarón, Newell enegrece ainda mais o tom, coincidindo com o momento em que os livros adquirem uma seriedade quase adulta, com Harry a enfrentar as primeiras dúvidas existenciais de uma adolescência diferente no pior momento possível. É aí que Newell ganha, porque o seu "Harry Potter" nunca condescende para com um público adolescente e, sem escamotear o aspecto de ficção do medo, o trata com a seriedade que ele merece. Mas essa bem-vinda recentragem no herói é feita a expensas da vasta galeria de personagens que o rodeia, quase todas reduzidas a uma ou duas cenas para picar o ponto, e das várias histórias paralelas que enriquecem o universo e lhe dão a consistência que conquistou milhões de leitores. Newell perde o filme nessa simplificação que, ainda por cima, o torna reservado aos iniciados no universo.
Nada disto impedirá "Harry Potter e o Cálice de Fogo" de ser um enorme sucesso de bilheteira, nem invalida que seja um bom espectáculo de aventuras. Mas apenas vem confi rmar o sábio adágio da cabra que gostou mais do livro.